SOBRE BARBÁRIE

– professor francês decapitado por fundamentalista islâmico

Mais uma vítima dos fundamentalistas na França. Um professor de História que ousou exibir charges tendo Maomé como personagem – numa aula sobre liberdade de expressão – foi decapitado em Paris por um jovem checheno (morto em seguida pela polícia). Mais uma vez, multidões foram às ruas em homenagem à vítima dessa animalidade medieval, em nome de valores tidos como basilares da civilização europeia/ocidental. Esses milhares de franceses que protestaram em defesa da liberdade de expressão (e de ensino, e de religião…) não compreenderam todavia que não há mais o que defender; quando um professor é decapitado por contrariar tabus religiosos, essas liberdades já desapareceram.

São aberrações como essa que impulsionam a ascensão da extrema direita xenófoba; são abominações como essa que alimentam os discursos psicóticos dos neocruzados do fundamentalismo cristão. É preciso refletir com cautela e discernimento sobre episódios assim – a incapacidade dos liberais/moderados/democratas em responder a isso abre caminho às bestas-feras de um passado que preferimos distante, os oponentes de mesma natureza do facínora decapitador checheno.

As modernas democracias europeias (e seus êmulos mundo afora) têm tido imensas dificuldades em lidar com a escalada dos extremismos nesse início de século XXI. Dos neonazistas aos neostalinistas, passando pelos militantes das múltiplas facções representativas das minorias organizadas e chegando aos fundamentalistas islâmicos e cristãos, várias sociedades estão a tornar-se reféns dos extremismos totalitários e de seus dogmas. Aproveitando-se dos valores de inclusão e tolerância presentes nessas nações (mesmo que relativos e questionáveis em tantas circunstâncias), esses grupos têm capturado os debates políticos e acuado as maiorias – silenciosas, como de hábito. Marchas e manifestações pela defesa dos valores democráticos não impedem esse movimento; as inúmeras passeatas pela paz no Rio de Janeiro não impediram que a guerra civil cotidiana triunfasse na cidade. Se quisermos defender de fato esses valores, será preciso entender que há um limite para a inclusão e a tolerância; se estas não forem recusadas a alguns, serão perdidas para todos.

Todo aquele que compartilha dos chamados valores ocidentais – as noções de secularismo, igualdade jurídica, liberdades individuais, garantia de oportunidades, resguardo das minorias – tem inúmeros motivos para envergonhar-se do legado de horror deixado nas colônias africanas e asiáticas em nome da pretensa missão civilizatória justificada por eles. O uso desses valores como tapume para interesses (e práticas) inconfessáveis deve constranger e perturbar – mas nunca tais valores em si. A imposição de um modelo ocidental de governo e sociedade mundo afora foi a fantasia brutal de três ou quatro gerações de europeus inebriados pelos cientificismos autocomplacentes da belle époque; não por acaso, fruto da mesma árvore das tiranias totalitárias do século XX, hoje redivivas em novas roupagens. Contudo, tais valores (em si) jamais serão motivo de vergonha. Jamais. Aceitar abastardá-los em nome de um anódino respeito às diferenças é abominável; permitir que outros valores – não apenas distintos, mas opostos a estes – se imponham às próprias sociedades ocidentais é um passo que o futuro nos haverá de recriminar séculos adiante.

Dito de outro modo, há valores que são inegociáveis. O secularismo, produto de séculos de conflitos religiosos e debates filosóficos, é um deles. Reduzir as crenças a uma questão privada dos indivíduos foi uma notável evolução de coexistência e pluralismo; não podemos, jamais, abrir mão disso. Se grupos religiosos (quaisquer que sejam) se considerarem ofendidos com esse princípio, devem procurar sociedades mais de acordo com suas crenças. Imigrar sempre foi a solução para os perseguidos de todas as épocas; pode (talvez deva) ser a saída para os perseguidores em nosso tempo. O decapitador checheno deveria estar vivendo nas montanhas da Síria onde os últimos batalhões do ISIS ainda resistem, e não num subúrbio de Paris. Lá estaria entre os seus iguais, incapazes de acompanhar os últimos mil e quatrocentos anos de história humana. Os aparatos de segurança das nações civilizadas monitoram os grupos extremistas (políticos, religiosos, ideológicos), identificam seus líderes, classificam suas pregações de acordo com o grau de periculosidade – mas só agem depois de episódios como esse em Paris. Avaliar friamente a escalada da brutalidade cotidiana nesse mundo do século XXI demonstra que tal estratégia não é o bastante. A insegurança gerada pelas afirmações de tabus identitários (e pelas pregações de ódio associadas aos incapazes de aceitá-los) açula as alcateias da extrema direita; ainda pior, insufla as maiorias contra todos aqueles que, de alguma forma, estão ligados a esses tabus. Cada atentado perpetrado por um fundamentalista islâmico alimenta os discursos histéricos sobre a incompatibilidade dos muçulmanos em relação às sociedades seculares. A melhor maneira de conter essa marcha demoníaca é aceitar que os fundamentalistas de fato não podem fazer parte das democracias pluralistas; tolerá-los significa violentar os próprios princípios sobre os quais se estabelecem essas sociedades. E o mesmo raciocínio se aplica a todos os delírios sectários do nosso tempo, dos defensores da supremacia branca aos acólitos da ditadura do proletariado. Totalitários teológicos (ou ideológicos) não podem ser aceitos como sócios nos valores dessa civilização; não são herdeiros da tradição liberal-iluminista.

Eis o terrível dilema cuja resposta se impõe. Há tempos. Karl Popper (morto em 1994) já havia enunciado em termos simples uma diretriz – não se pode tolerar os intolerantes. Na mesma linha, Norberto Bobbio (morto em 2004) reconheceu um princípio inquietante – nem toda paz é um bem, nem toda guerra é um mal. Se nada for feito, a presença desses seres bestiais será a gangrena desse mundo como o conhecemos – substituído não por uma versão melhorada de si mesmo, mas pelas distopias sectárias emersas dos abismos infernais de uma humanidade embrutecida. Enquanto acreditarmos que o problema se resume ao decapitador – e seguirmos preferindo ignorar aqueles que aplaudem seu gesto – seguiremos assistindo à erosão do mundo sob nossos pés. Sombrios tempos; sombrias reflexões.

Leandro Gonsales Ciccone
outubro de 2020

SOBRE REFUGIADOS

– crise humanitária e xenofobia na Europa –

 

UM ESPECTRO RONDA A EUROPA

Nos dois últimos anos, mais de dois milhões de pessoas cruzaram as fronteiras europeias – no Mediterrâneo, no Egeu, nos Bálcãs – em busca de um sonho de estabilidade e oportunidade. Talvez alguns enxerguem essa situação como uma saída temporária às guerras civis em seus países de origem (Síria, Líbia, Iraque); talvez esperem mais. Desse fluxo humano – pontuado de tragédias pessoais e comunitárias, vidas perdidas, cobiça de atravessadores, reações radicais e polêmicas – desponta a maior movimentação de populações pela Europa desde as catástrofes da Segunda Guerra Mundial, com suas legiões de sobreviventes desabrigados e famintos pelas estradas do continente.

Em meio às platitudes dos discursos de acolhida das esquerdas e às invectivas ferozes dos radicais da extrema direita, o Velho Mundo se depara com um desafio bastante real, de magnitude inédita nas últimas sete décadas. Compreender o significado desse fenômeno requer analisar em separado suas partes; é o que tentaremos fazer.

 

PASSIVIDADE ONEROSA

No rastro das malfadadas invasões norte-americanas do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003) e da chamada Primavera Árabe (2011), um delicado equilíbrio geopolítico construído no Oriente Médio ao longo de décadas ruiu em uns poucos anos. Se de um lado há que se louvar a queda de ditadores sanguinários – de Saddam Hussein a Muamar Kadafi, passando por Hosni Mubarak e os selvagens do Taleban afegão – também é necessário reconhecer que o colapso desses regimes abriu um vazio de poder preenchido pelo caos armado de guerrilhas e movimentos jihadistas, dos quais os homicidas do ISIS (o autointitulado “Estado Islâmico”) são o paradigma.

Em todo o espectro dessas rupturas, responsabilidades europeias são inegáveis. Apoiando durante décadas esses tiranos (ao menos implicitamente), as potências da Europa hesitaram em seu posicionamento diante dos movimentos de rebeldia que acabaram por derrubá-los em vários países. Ao intervir na Líbia, limitaram-se a bombardear as forças de Kadafi, garantindo a vitória dos rebeldes – abstendo-se de agir diante da guerra civil que implodiu o país. Ao não intervir na Síria, provocaram a fuga de quase cinco milhões de pessoas, reinstaladas precariamente nos países vizinhos, e permitiram o massacre de meio milhão de civis por Bashar al-Assad – que, com apoio da Rússia de Putin, conseguiu aferrar-se ao poder e (nos últimos meses) recuperar o controle sobre a maior parte do território nacional. Espécie de reedição árabe da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a Guerra Civil Síria iniciada em 2011 também envolve os principais protagonistas e ideologias de um mundo convulsionado; da mesma maneira, se compôs de hipocrisias e falsas neutralidades, inócuas negociações diplomáticas e limites retóricos ultrapassados sem consequências (basta lembrar dos ataques com armas químicas a civis por Assad, que Barack Obama definira como estopim para uma reação militar da OTAN, e que foram criminosa e tacitamente esquecidos pela comunidade internacional). Desnecessário lembrar que apenas dois meses após o fim da Guerra Civil Espanhola – que muitos consideraram como somente um drama local na periferia da Europa – teve início a Segunda Guerra Mundial; dramas periféricos podem ter desdobramentos imprevisíveis.

A Velha Europa pode ter poupado seus recursos financeiros e militares em operações no seu entorno ao longo desses anos; pode também ter se esquivado de assumir posição diante de conflitos que opõe seculares liberais e fundamentalistas, jihadistas e milícias, sauditas e iranianos. Mas não pôde evitar que as comunidades atingidas respondessem pondo-se em marcha rumo ao sonho europeu. Dos acampamentos precários nos frágeis estados vizinhos – Jordânia, Líbano, Turquia – ou de áreas conflagradas nos seus próprios países partem então as multidões de desalojados e fugitivos. Aqueles que sobrevivem à jornada (os mortos na travessia do Mediterrâneo ou do Egeu já se contam aos milhares) desembarcam num continente que se lhes torna cada vez mais hostil; sonho convertido em pesadelo?

 

ESTRATÉGICA QUESTÃO DE SEMÂNTICA

Mas é fundamental entender o que buscam esses homens e mulheres, com seus filhos e (poucos) pertences, ao bater às portas da Europa. Aqui reside uma das mais delicadas incompreensões de toda essa questão.

Na visão da parcela da opinião pública europeia favorável à admissão desses indivíduos no interior de suas fronteiras, trata-se de uma causa humanitária abrigar aqueles que fogem de conflitos brutais nas vizinhanças da Europa. Mas a definição do status a eles oferecido é bastante clara: refugiados. Ou seja, pessoas aceitas numa sociedade que não a sua, em caráter temporário, provisório. Subentendida nessa definição está uma ideia que permanece (cortesmente) implícita – esses que ora são recebidos retornarão às suas regiões de origem a curto ou médio prazo. Providenciar-lhes moradia, trabalho e assistência nesse momento de aflição constitui um ato de generosidade – perecível, entretanto. Algumas das sociedades europeias dispõem-se, assim, a receber grupos de indivíduos sem qualquer relação com sua cultura e seus valores exatamente por se tratar de um certo intervalo de tempo. Distinção fundamental nesse raciocínio, refugiados não são imigrantes.

 

FALTOU COMBINAR COM OS RUSSOS

Não poderia ser maior a incompreensão de parte a parte. Essas famílias que se deslocam para a Europa não buscam um abrigo provisório; não pretendem aguardar em segurança a possibilidade de retornar aos seus lares. Querem se estabelecer em meio às oportunidades materiais e intelectuais das sociedades europeias; querem usufruir de direitos e liberdades inexistentes em suas pátrias de origem. Em suma, veem a Europa como um novo lar; desejam incorporar-se às novas realidades nas quais se estabelecem. Todavia, com uma importante ressalva: não tem a intenção de abandonar seus valores e sua cultura; de fato, desejam viver na Europa, mas não anseiam por tornar-se europeus.

No mais das vezes, abominam vários dos costumes de suas sociedades de adoção. Não compreendem valores centrais da civilização europeia (arduamente construídos sobre tantas guerras e revoluções), como o secularismo, o pluralismo e o liberalismo. Enxergam nações de perspectiva individualista, materialista, de moralidade duvidosa e permissividade abominável. Esperam poder viver com seus valores no interior dessas sociedades com as quais não se identificam. E isso acaba por transcender enormemente qualquer pretensão pluralista no seio da Europa; aqueles que buscam se instalar entre nós sem partilhar de nossa comunidade passam a ser vistos como ameaça.

 

DUPLIPENSARES INFANTIS

Essa questão só se constitui num problema no interior das sociedades pluralistas ocidentais, pelas suas próprias contradições internas. Trata-se de uma discussão irrelevante em qualquer das sociedades muçulmanas tradicionais, uma vez que inexiste ali a possibilidade de viver apartado dos valores locais. Sendo ou não muçulmanas, as mulheres devem usar o véu (mesmo turistas ocidentais); os homens terão de abster-se do álcool; homossexuais podem ser presos e inclusive condenados à morte por demonstrações públicas ou denúncias de atos privados. Curiosamente, mesmo as esquerdas mais ligadas aos direitos das minorias não denunciam esses absurdos – considera-se como normal que essas nações imponham aos estrangeiros (enquanto estejam no interior de suas comunidades) sua visão de mundo e seus valores. Causou indignação em muitos, na recente visita do presidente iraniano à Itália, o interdito ao vinho no jantar a ele oferecido e os tapumes recobrindo estátuas greco-romanas e renascentistas cuja nudez seria ofensiva ao convidado. Numa situação inversa, certamente os iranianos não serviriam vinho – nem colocariam estátuas nuas nos aposentos do hóspede… Tacitamente, reconhece-se como legítimo que uma sociedade tradicional defenda de maneira intransigente os seus valores. Se de fato essa é a questão, por que a Europa não poderia fazê-lo?

Nesse mesmo discurso das esquerdas fica implícito o motivo. Enquanto os europeus seriam os portadores de uma cultura imperialista, cujos valores impuseram ao conjunto dos povos do planeta por meio de um colonialismo rapace, os muçulmanos representariam uma cultura de resistência, orgulhosa de si mesma, cuja reafirmação diante do Ocidente se constituiria num desagravo aos crimes das potências imperiais do passado. Obviamente, essa visão também se associa à postura diante dos refugiados: um continente que tanto os explorou no passado (e cuja riqueza presente estaria baseada nessa espoliação pretérita) tem agora a obrigação moral de acolhê-los. Necessário desmantelar esse arrazoado de estupidez.

Por maiores que sejam os crimes do imperialismo europeu no Terceiro Mundo (Islã incluso), não servem para desqualificar os valores da civilização ocidental; pelo contrário, na própria crítica a esses crimes sobressaem os princípios que caracterizam a cultura da Europa – e que precisaram de séculos para se consolidar. Parece evidente demais para que se precise ressaltar o quanto os assassinos do ISIS desprezam a vida humana; pensar (por um instante que seja) que isso simbolize uma resistência cultural ao poder imperialista constitui diagnóstico certo de lobotomia. Criticar os abusos e violações do colonialismo europeu, reconhecendo responsabilidades, é tarefa essencial dos intelectuais ocidentais; o que não se pode é usar esse passado espúrio para legitimar as perfídias jihadistas do nosso tempo. E não deveria ser necessário lembrar que a riqueza construída pela espoliação colonial não existe mais; em duas guerras mundiais catastróficas, os próprios europeus se encarregaram de destruir esse patrimônio. Responsabilizar a atual geração de habitantes da Europa pela cupidez de seus avós e bisavós, nessas circunstâncias, constitui a mesma patacoada dos cristãos medievais condenando (e massacrando) os judeus de seu tempo pela execução de Cristo…

Logo, quando se diz que a Europa de princípios do século XXI tem o dever moral de acolher esses refugiados de territórios onde ela própria exerceu criminosa rapina, o único argumento capaz de nos permitir levar tal raciocínio minimamente a sério não pode passar por essa memória histórica panfletária, e sim pelos valores e princípios que os fundamentalistas negam veementemente. E essa contradição nos leva de volta ao ponto de origem: refugiados ou imigrantes? inclusão ou exclusão?

 

ESTRANHOS EM CASA

Colocamo-nos assim, ao mesmo tempo, diante de uma Europa que se orgulha dos seus valores e instituições (e que preza seus ideais de comunidade e bem-estar tão arduamente conquistados), e diante de uma massa de indivíduos que buscam viver ao seu modo no interior dessas sociedades de adoção – partilhando suas oportunidades, mas não sua identidade. Quando o colégio de líderes islâmicos do Reino Unido envia uma petição ao Parlamento solicitando que as questões entre muçulmanos sejam julgadas por seus tribunais tradicionais segundo a sharia (propondo portanto um sistema judicial paralelo), fica demonstrado de maneira muito explícita o que queremos dizer. Não se trata de garantir o direito de edificar suas mesquitas, ou de escolas bilíngues, ou de políticas contra a discriminação; trata-se de reagir furiosamente a cartuns “desrespeitosos”, de recusar o divórcio e exigir a punição do adultério, de restringir o acesso das filhas à escola e a liberdade de circulação das esposas. Viver em meio a uma sociedade que se considera corrompida (mas materialmente bem-sucedida) significa jamais transigir com seus hábitos e ideias. Numa Europa tão marcada pelo flagelo dos nacionalismos, essa postura alimenta os chacais da extrema direita com argumentos de suposta aplicabilidade autodemonstrável.

Em tempo: não alimentemos ilusões sobre o real potencial de inclusão nas sociedades europeias dos muçulmanos que eventualmente aceitem incorporar os ditos valores ocidentais. Em todo o continente, são muitos milhares de fiéis islâmicos que adaptaram suas crenças e práticas a uma lógica privada, dentro da tradição do secularismo europeu. Mas isso raramente significa a efetiva igualdade de oportunidades e a real integração nas comunidades em que se estabeleceram; em casos particularmente críticos (como o da França), a realidade se reflete numa segregação velada ou por vezes explícita… As frequentes tensões nas periferias de Paris envolvendo jovens de famílias muçulmanas (em muitos casos, já na segunda ou terceira geração de imigrantes) testemunham um círculo de educação deficiente, desemprego e discriminação. Contudo, o mesmo fenômeno é encontrado nos países islâmicos mais ricos – como as monarquias do Golfo Pérsico, Arábia Saudita à frente – em relação aos trabalhadores pobres vindos do sul e sudeste asiáticos, por exemplo; mesmo constituindo a maioria da população em várias dessas nações, são indivíduos sem direitos, verdadeiros apátridas.

 

DISCUTINDO A RELAÇÃO

Continente de xenofobias por vezes implícitas (mas sempre presentes), a Europa assiste hoje a uma certa histeria em relação aos riscos trazidos por esses refugiados/imigrantes. Baseada em incompreensões de origem e de expectativas, em preconceitos recíprocos e posicionamentos espúrios, essa histeria constitui o resultado mais visível na margem superior do Mediterrâneo de um colapso generalizado que se desenrola aos olhos do mundo no norte da África e no Oriente Médio. Oscilando entre as portas abertas por razões humanitárias e as portas fechadas por motivos menos nobres e confessáveis, as sociedades europeias se deparam assim com as contradições de sua própria identidade. Parece pouco razoável reduzir tudo isso a uma simples histeria xenófoba, todavia; deveras existe uma ameaça a valores essenciais da chamada civilização ocidental em jogo – sendo o secularismo aquele sob maior risco. Negar as pressões e reações dos múltiplos protagonistas desse drama plural – afirmando um discurso unitário em favor seja dos direitos humanos ou da defesa da nação (significando essas ideias o que quer que se entenda por elas) – só favorece os demagogos dispostos a manipular tais sentimentos difusos.

Estender ao conjunto das comunidades muçulmanas um temor que corresponde somente às minorias radicais parece igualmente leviano. Ainda que seja preciso reconhecer o uso canhestro das liberdades europeias pelos jihadistas – sendo sua fácil movimentação pelos países do bloco europeu o mais evidente dentre eles – ceder aos proibicionismos e racismos certamente não constitui a melhor resposta. Negar as discriminações cotidianas sofridas pelos imigrantes muçulmanos e seus descendentes (nascidos na Europa, mas jamais efetivamente integrados) parece igualmente uma reação infantil; diante da maciça participação de jovens homicidas com fé islâmica e passaporte europeu nos atentados ocorridos no continente nos últimos anos, acreditar que o risco estaria nos recém-chegados seria de uma ingenuidade obtusa. Compreender as frustrações (e psicopatias) que justificam aos olhos dos jihadistas sua opção pela carnificina jamais legitimará seus atos, mas pode auxiliar na prevenção do alastramento do jihadismo entre os jovens muçulmanos do Velho Mundo. Exigir a aceitação dos valores europeus por aqueles que se disponham a viver na Europa não constitui a quintessência do eurocentrismo imperialista, mas tão somente o senso comum do estabelecimento de minorias no seio de comunidades com amplo grau de coesão; da mesma forma que muçulmanos na Europa devem submeter-se aos princípios de uma sociedade secularizada, europeus no Islã não podem pretender-se acima ou alheios aos ditames de sociedades confessionais – ainda que em ambos os casos se lhes seja reconhecido o inalienável direito de resguardar em privado suas convicções pessoais.

Como em toda questão verdadeiramente humana, essa não permite respostas seguras, nem crenças dogmáticas; discutir tais problemas de maneira clara parece ser a única maneira de se chegar a soluções e compromissos. Afinal, só mesmo sociedades pluralistas conseguem tergiversar diante da histeria – em busca da sensatez.

 

            Leandro Gonsales Ciccone

19 de março de 2016