MITOS & HERÓIS

REAÇÃO DOS QUADRINHOS

 

Fenômeno curioso teve lugar nesses anos de transição entre os séculos XX-XXI. Em praticamente todos os suportes da moderna cultura de massas – literatura, cinema, quadrinhos, seriados de TV – assistiu-se a uma verdadeira ressurreição do mito (e da linguagem mítica) como catalisador da expressividade. Sem dúvida, essa maré montante pode ser facilmente discernível no fôlego revigorado dos velhos super-heróis no cinema (convertendo-se numa das franquias mais lucrativas da última década, Spiderman puxou a fila, seguido por novas versões para Hulk, Superman, Batman – e até mesmo o Homem de Ferro!), mas passa pelo extraordinário sucesso da trilogia Lord of the Rings, catapultando as mais de mil páginas da prosa de Tolkien à lista dos livros mais vendidos, e incorporando imediatamente os personagens e dramas da Terra Média ao imaginário de uma nova geração. Muito mais do que o vácuo criativo dos estúdios e roteiristas de Hollywood – que vêm resgatando sucessos passados às dúzias, de Indiana Jones a Star Trek – essa tendência reflete uma determinada expectativa do público, convenientemente aproveitada pela indústria do entretenimento. Constatação reconhecida, pergunta inevitável: quais circunstâncias são essas que levaram a restabelecer-se o domínio do mito? Dito de outra forma: qual o sentido do mito na cultura contemporânea?

  

PRINCÍPIOS HOMÉRICOS

 

Ruínas descobertas em princípios do século XX, contemplando o azul do Egeu a partir do Helesponto, devolveram enfim materialidade às epopéias fundantes da cultura grega (e ocidental). Até então vista como mera fábula de expressão épica, a Guerra de Tróia despertou pelas mãos dos arqueólogos para lembrar aos historiadores – e aos estudiosos como um todo – o nexo causal entre Mito e História. Discurso construído com códigos muito particulares, transmitido pela oralidade (elemento muito forte ainda hoje, como veremos adiante), o Mito não se pretende como uma narrativa histórica – pretensamente objetiva, material-concreta, formulada a partir dos dados empíricos apurados nas fontes de época. Entretanto, tem a História como ponto de partida; reveste o ocorrido de um caráter simbólico, referido no mais das vezes no plano metafísico, e adota uma linguagem expressiva e grandiloquente, capaz de fixar-se na memória e marcar a consciência. Por isso mesmo sua essência é oral; parte do vivido, retrabalhado e engrandecido, para fundar uma memória social – uma perspectiva de quem somos por nós mesmos. Não se pode estudar um mito, portanto, para compreender “o que houve”, mas sim em busca de um “como se explica”. Nesse sentido o relato mítico transcende o plano da ocorrência para alcançar o domínio da consciência.

 

Na Ilíada e na Odisséia, portanto, podemos no máximo encontrar referências da “verdadeira” Guerra de Tróia, do conflito entre os poderosos troianos e os micênicos (com seus numerosos aliados) pela hegemonia mercantil no Egeu, episódio ligado ao nascimento da própria idéia de uma civilização grega. São na verdade os dramas humanos (a dubiedade da bela Helena, a ambição de Agamenon, a astúcia de Ulisses, a bravura de Aquiles), em paralelo às intervenções divinas (as disputas entre Apolo, Afrodite, Hera, Zeus, Poseidon, em defesa de seus favoritos – muito humanas em sua natureza, aliás) que efetivamente interessavam aos aedos, os bardos itinerantes que declamavam essas histórias um dia reunidas em forma de epopéia. Talvez o próprio Homero, tido como sistematizador e organizador dessa tradição oral de quase quatro séculos, seja ele também um personagem do mito.

 

E essa ênfase nos dramas humanos (refletidos enfim nos próprios deuses do panteão grego) ajusta o foco no centro de qualquer mito – o herói. Muito mais do que um mero protagonista, encarna o próprio ideal de humanidade; em escala épica, enfrenta (e vence) os desafios do mundo, os homens e deuses que se interpõem à realização de seu destino – ou missão, ou sacrifício, admitindo as variações de contexto e estilo. Humano em sua origem, o herói transcende essa natureza ao cumprir sua jornada, realizando-se plenamente; em especial, enfrenta os dilemas éticos que inquietam todo homem, vacila por vezes na busca do bom e do justo – mas sempre encontra um meio de atender aos seus princípios (que partem da sociedade e ao mesmo tempo seguem sendo reincorporados por ela a cada geração) e salvaguardar sua virtude. Mesmo seus erros acabam por se apequenar diante da grandeza de seu caráter. Quando o troiano Heitor, que matara Pátroclo em batalha, aceita o desafio mortal de Aquiles, mesmo que injusto, o faz em penhor de uma morte digna – e tem seu corpo enxovalhado pelo algoz; reconhecendo a gravidade do mal que causara como expressão de seu amor pelo companheiro morto, o próprio Aquiles lamenta, sabendo que assim sacrificara a própria honra. Cônscios da magnitude de seus atos, os heróis homéricos agem segundo seus princípios – e assumem a responsabilidade pelos seus erros; há algo de divino em seu desprendimento, sobrepondo valores intangíveis a interesses concretos. Tamanha humanidade acaba, enfim, por ter muito pouco de humana…

  

TEMPOS CRUZADOS

  

Mas o tempo do relato não é o tempo do evento nas epopéias homéricas. Na verdade, os poemas consolidam uma memória já distante, decorridas muitas gerações. Mais ainda: são fruto de um contexto bastante distinto. Os gregos dos tempos de Homero (ca. séculos IX-VIII a.C.) não eram os senhores do Egeu – na verdade, pouco puderam usufruir da supremacia duramente conquistada em Tróia, pois logo suceder-se-iam as cruéis invasões dos dórios e eólios, guerreiros que devastaram as velhas cidades (a começar pela outrora grandiosa Micenas) e impuseram o terror e o isolamento durante cerca de quatro séculos. A memória dos feitos venturosos de tão grandes ancestrais, cantada em versos nessa era sombria, forjou a identidade grega, criando seus modelos fundamentais de cultura e caráter; narrativas de glórias passadas como escapismo de agruras presentes?

Dispersos como indivíduos nas névoas do tempo, os heróis adquiriam então sua natureza singular; mais do que por seu braço invencível ou sua mente arguta, ganhavam sua nova dimensão porque – mortais que eram – teriam se mostrado capazes de enfrentar a vulnerabilidade (pusilanimidade!) de nossa condição humana. Venerá-los, preservando sua memória em versos, era uma forma de incorporar suas virtudes – assim como os tupinambás, partilhando a carne do mais bravo dentre os vencidos, ou o católico, comungando o corpo de seu salvador. Central na compreensão do mito, a figura do herói encerra um complexo modelo de valores que definem seus contornos a partir da apropriação consciente do vivido; na melhor tradição romântico-positivista, a História (Memória) como Mestra da Vida.

 

LINHAGEM ILUSTRE

 

Poderíamos prosseguir ad infinitum nesse apanhado de exemplos conceituais – o cavaleiro medieval, o bandeirante paulista, o cowboy americano – mas acabaríamos por chegar sempre ao mesmo lugar: o mito como expressão idealizada, numa sociedade em crise, de valores considerados essenciais. Seu apelo jamais se perdeu, e sua linguagem replicou-se em todas as épocas e em todas as culturas; da profecia mesoamericana do quinto sol aos relatos paleolíticos de transmissão oral em tribos bantu africanas, passando pelo portentoso Mahabharata (registro em epopéia da grande guerra que forjou a identidade indiana – permitindo um natural paralelo com os poemas de Homero) e pelo grande Êxodo bíblico dos hebreus sob o comando de Moisés. Fosse entre os trovadores das cortes feudais, cantando as proezas de Rolando ou descrevendo a grandeza da Camelot de Artur numa era de isolamento e medo; fosse em meio ao vazio de poder que sucedeu aos estados beligerantes indianos da Antiguidade, fixando em poesia a memória dos antigos (e bravos) Vedas; fosse enfim entre as tribos hebraicas divididas sob os Juízes, durante as guerras contra cananeus, filisteus e tantos outros – tratava-se sempre das mesmas circunstâncias. Quando os desafios do presente parecem apequenar os homens e indispô-los uns contra os outros, seus olhos muitas vezes se voltam para os grandes do passado e suas conquistas memoráveis; assim são forjados os mitos e os heróis. E isso nos leva de volta ao nosso próprio tempo.

 

SUPERPODERES, SUPERDILEMAS

 

Retornemos com um truísmo: coube aos quadrinhos (assumindo a função das epopéias) recuperar a linguagem do mito nos nossos dias. Os heróis dos quadrinhos, nascidos fundamentalmente a partir dos anos 1930 – filhos diletos dos EUA da Grande Depressão, tempo igualmente da glória do western como estilo e do culto ao cowboy como ícone do ideal americano, reminiscência de momentos mais felizes – rapidamente inspiraram réplicas (e tréplicas, como o Asterix francês…) por todo o Ocidente. Nenhuma delas, entretanto, teve o alcance dos chamados “super-heróis” americanos. Alguns deles jamais puderam dissociar-se do espírito de patriotada – que dizer de um “Capitão América” de uniforme azul e vermelho com estrelas (!), ou mesmo de um Superman com a mais piegas das sunguinhas vermelhas sobre um macacão azul (e não se pode esquecer da capa!), ou o próprio Spiderman (onde já se viu uma aranha azul e vermelha? tampouco um pica-pau das mesmas cores, contudo…). Outros, todavia, mantiveram uma trama capaz de superar maniqueísmos por demais datados; é o caso especialmente de Batman, o Cavaleiro das Trevas, que continua a render boas histórias – e bons lucros. Basta lembrar que o homem-morcego que hoje protagoniza uma cinessérie sob a batuta de Christopher Nolan foi alvo de outra iniciativa semelhante há menos de uma década (a bem da verdade, as duas seqüências praticamente se sobrepuseram). O milionário sombrio, paladino da justiça, desprovido de superpoderes – ainda que disponha de um supercarro, superjato, supercinto e todos os superequipamentos que a ciência poderia produzir (e a fortuna poderia comprar) – combate o crime numa Gotham City que muitas vezes o enxerga como vilão; que herói poderia simbolizar melhor nossa humanidade dúplice, cuja ética dos discursos sucumbe ao flerte cotidiano com o Mal? Poder-se-ia lembrar ainda do jovem Clark Kent do seriado Smallville, um dos maiores sucessos da TV americana, que vacila na difícil jornada de amadurecer como herói – desenvolver uma ética singular (para poderes absolutamente singulares) – ao mesmo tempo em que amadurece como indivíduo – deixa de ser um garoto para se tornar um homem (enquanto deixa escapar todas as inacreditáveis mulheres que cruzam o seu caminho…). Note-se que não falamos em “pessoas reais”, nos “heróis” do esporte, das artes, dos negócios, da política; de fato, pela perspectiva dos antigos, valorizamos uma natureza bastante específica do mito – mesmo que personagens recentes como Lawrence da Arábia, Winston Churchill, Mohandas Gandhi, possam ser tidos como heróis, no geral a cultura de massas parece converter esse tipo de figura em meros ícones: divindades efêmeras, vinculadas à fama, ao redor das quais floresce o espetáculo – mas não o mito. De qualquer forma, perguntemos mais uma vez: qual o sentido do mito na cultura contemporânea?

 

O PODER DO MITO

 

Ao fim e ao cabo, tornamos ao ponto de origem. Hoje como ontem, mitos e heróis são integradores culturais; traçam identidades, ilustram valores, incorporam memórias. Constroem narrativas sociais, que se apropriam do passado e lhe atribuem significados conscientes. Sob o domínio da experiência e da imaginação, tornam-se testemunhos eloqüentes de uma visão introspectivo-subjetiva da inserção de uma coletividade no mundo – e no tempo. Linguagem suficientemente rica, capaz de amoldar-se a recursos sempre novos (provado está pela feliz associação que pontuamos entre mito e cinema), a tradição mítica – estabelecida sobre a figura do herói – parece associar-se definitivamente ao humano, e ganha especial relevância nos momentos de inquietação, perante as encruzilhadas. É nos tempos de incerteza que o mito, enquanto obra da consciência, enquanto reserva dos princípios e valores – enquanto História, Ética, Memória, Épica – adquire pleno sentido. Em meio ao cinismo e ao pragmatismo (utilitarismo?) de um mundo autocomplacente, os homens comuns encontram nos mitos os fatores de encorajamento e apaziguamento, os códigos de virtude que parecem cada vez mais ausentes das sociedades contemporâneas. O homem comum (em particular o jovem, essa mescla tão curiosa de egoísmo e idealismo…) agradece ao ver que Frodo não falhou. Melhor dizendo, sente-se reconfortado pelo fato de um pequeno ser aceitar uma missão que parecia muito além de suas forças, da qual dependiam tantos; sente-se reconfortado pela união dos dessemelhantes, dos contrários, dos inimigos, contra um perigo comum; sente-se reconfortado por testemunhar a grandeza de uma causa a prevalecer sobre a pequenez humana (aqui incluídos elfos, anões, ents…). E esse sempre foi o sentido mais profundo do mito: um elemento de resgate da própria humanidade. Nos momentos mais sombrios, é nos heróis que os homens não apenas se espelham, mas se apóiam; com o espírito agitado pelo épico, recobram a sede pela justiça e pela verdade. Fenômeno curioso – mas natural – a redescoberta tão intensa do mito. O velho Campbell deve estar orgulhoso.

 

 Leandro Gonsales Ciccone

 janeiro de 2010