BOLSONARO E A PANDEMIA

Poucas situações expuseram o despreparo de Bolsonaro de maneira tão evidente quanto a pandemia de coronavírus. Claro, trata-se de uma situação excepcional, cuja gestão desafiaria até mesmo pessoas mais capazes; ainda assim, a tragédia que vivemos nesse ano no Brasil só se compara ao caos provocado pela estupidez triunfante de Donald Trump nos EUA – não por acaso, ídolo e modelo do atual presidente brasileiro. Analisar os principais erros – dentre tantos – cometidos nesse ano pode nos ajudar a entender a crise em que seguimos imersos.

Bolsonaro nunca levou a pandemia a sério. Definiu-a como gripezinha em várias ocasiões (e agora mente ao afirmar que nunca disse isso), boicotando as medidas de proteção e distanciamento – do uso de máscaras à quarentena em si – em confronto direto com os médicos e especialistas; apregoou supostos medicamentos como terapia, confrontando possíveis vacinas com base em falsos argumentos; e, coroando seu desempenho, insuflou a desobediência às restrições em nome de não sermos um país de maricas. Foi contra o auxílio emergencial articulado pelo Congresso – mudando o discurso ao ver-se (injustamente) beneficiado por ele em termos de popularidade; ordenou a manipulação das estatísticas de controle dos casos e vítimas, e transformou o Ministério da Saúde numa arena de disputa política – com três ministros em oito meses, a caminho de um quarto. Em suma, fez todo o possível para transformar a crise gerada pelo coronavírus numa catástrofe – fracassando apenas diante do discernimento (por vezes surpreendente, como no caso de Dória) de governadores e prefeitos. Se dependêssemos apenas dele e das nulidades que o cercam, podemos estar certos de que tudo teria sido ainda pior.

O processo que levou à demissão do ministro Mandetta resume à perfeição nosso drama. Naquele momento, o destaque do ministro ofuscava o presidente – cuja única preocupação é manter-se em evidência – não apenas na imprensa (desprezada por ele), mas principalmente nas redes sociais, seu habitat natural. A campanha vitoriosa de 2018 demonstrou a busca pelo confronto como estratégia do populismo digital; nessa demagogia da era das mídias sociais, suas milícias de influencers e polêmicas vazias são o verdadeiro foco do poder (não o governo). Mas é um erro crer que Bolsonaro compartilhe dessas ideias; não se trata de crenças ou convicções pessoais, como suas guinadas de opinião claramente demonstram. O atual presidente repercute grupos de pressão e amplifica suas teses, limitando-se ao bônus de ser visto como paladino dessas causas. Dessa forma, no caso Mandetta – como em todos os demais – não seria a capacidade técnica e política do ministro, obscurecendo o presidente, que configuraria a verdadeira ameaça. Na verdade, tudo se reduz sempre à mera preocupação com notoriedade/popularidade.

Nessa nova escalada da doença em fins de 2020, a responsabilidade deve ser compartilhada entre o governo infame e a massa de cidadãos (muitos deles jovens que se opõem furiosamente ao atual mandatário) rompendo com as restrições dos especialistas e aglomerando-se alegremente em bares, festas, ruas de compras… Nessa leviandade negacionista, o que separa esses jovens do presidente que odeiam são apenas alguns meses de discurso. Mas a estupidez do povo não poderia servir de escudo à estupidez do governo; e o novo round desse campeonato irracional passa pela questão da vacina.

Disputas políticas à parte – com Dória patrocinando uma vacina (em parceria com laboratório chinês) que não é considerada como alternativa pelos países desenvolvidos, e anunciando um calendário de vacinação antes mesmo do imunizante ser aprovado… – o governo Bolsonaro soma mais um fracasso à sua já extensa lista. Contrariando o discernimento mais elementar das nações civilizadas (que encomendaram vacinas de todos os laboratórios com pesquisas e testes avançados), o atual governo brasileiro centrou suas apostas numa única alternativa, a britânica Astra-Zeneca/Oxford, que ainda não pôde apresentar resultados conclusivos. Vale lembrar que o governo britânico (também chefiado por um populista de direita, mas dotado de suficiente inteligência), único até agora a iniciar a vacinação em massa no Ocidente, está utilizando a vacina germano-americana Pfizer, sem o menor pudor nacionalista… Pressionado por todos – da opinião pública aos empresários (muitos dos quais seus aliados) – Bolsonaro agora tenta acertar a compra das vacinas Pfizer, num atraso que deve comprometer nosso ano de 2021. Decisões que deveriam ser tomadas por critérios racionais prestaram-se à demagogia de um grupo político cujas alucinações seguem comprometendo nosso presente e nosso futuro.

Se há o que agradecer nessa situação, é apenas o fato de que a visão econômica não-intervencionista da atual gestão permitiu uma recuperação econômica muito mais acelerada do que se poderia prever – um governo petista teria apenas multiplicado nosso endividamento, contratando mais milhares de funcionários públicos e iniciando outras obras faraônicas… Coube ao Congresso atenuar os efeitos sociais da crise, numa complementaridade até aqui benéfica – outro motivo para impedir o controle da Câmara e do Senado por aliados bolsonaristas.

Mas o nosso drama permanece. O problema dos medíocres é estarem sempre à sombra – e não há Weintraubs nem filhos suficientes para garantir-lhe ilusões de grandeza. Em lugar de um país de maricas, o que temos é um governo de imbecis (e não é de hoje…); crises monumentais como a da pandemia de coronavírus expõem essa realidade de maneira cruel, mas a gestão cotidiana dos problemas comuns transmite a mesma mensagem. Soluções mágicas não aparecerão das urnas,  ao contrário do que creem os messiânicos; devem ser buscadas a cada dia, nas votações parlamentares, nas iniciativas de prefeitos e governadores, nas decisões judiciais, na pressão da opinião pública, nos debates na imprensa. Mais do que nunca, impossível escapar à necessidade de sermos responsáveis pelo destino de nossa sociedade e de nosso país; essa responsabilidade segue intransferível. Cabe-nos assumi-la.

Leandro Gonsales Ciccone
dezembro de 2020

SÃO PAULO: ELEIÇÕES 2020 (4)

Bruno Covas e seu PSDB saíram vitoriosos afinal, preservando o governo da maior metrópole do país. Num balanço nacional, a centro-direita consolidou-se (com destaque ao DEM), e uma direita conservadora parece tomar forma mais clara, capitaneada pelo Republicanos – partido evangélico que, apesar da perda do Rio de Janeiro com a derrota de Crivella, passou de nanico à lista dos dez maiores do Brasil; a esquerda preservou bastiões importantes, como o PSB no Recife (numa luta fratricida com o PT, cada vez menor nos grandes centros), e enfrentou derrotas importantes com o PCdoB em Porto Alegre e com o PSOL em São Paulo. Contrariando 2018 e seu discurso antipolítica, 2020 premiou as velhas elites dirigentes. Covas promete ser “um rebelde dentro do PSDB”, numa demonstração de humor involuntário; com seus aliados derrotados nas urnas, Bolsonaro comemora as vitórias do Centrão, seus novos amigos de ocasião.

Essa foi mais uma campanha intensa nas redes sociais, confirmando a tendência desses novos tempos. Postagens de campanha foram repassadas pelos apoiadores (verdadeiros robôs humanos) e ganharam capilaridade num efeito multiplicador. Investigações recentes confirmaram as denúncias de que vários dos autodenominados influenciadores digitais bolsonaristas são pagos (com recursos de origem ainda a ser rastreada) por sua militância; cabe investigar se apenas as milícias digitais de direita tiveram um esquema desse tipo. De todo modo, Boulos foi incensado por ter obtido a mobilização da juventude (ao menos desses jovens militantes de classe média), e reverteu as críticas do 1o turno ao obter votação mais expressiva nas periferias. Muito se falou de uma quebra geracional, com a eleição de Covas dependendo dos eleitores mais velhos, e prenunciando assim uma futura onda eleitoral de esquerda. Mas não custa lembrar que a atual geração entre 50-60 anos foi adolescente nos anos 1970, e que centenas de hippies viraram yuppies quase sem perceber; ainda que às vezes demore, a adolescência sempre termina…

Falou-se também sobre uma nova esquerda despontando nessa eleição, em tese livre do ônus da defesa acrítica da herança lulista/petista e dos vícios ideológicos da geração anterior. Mas os discursos – e, principalmente, as reações de figuras como Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos – ao longo das campanhas demonstram a fragilidade dessa renovação. D’Ávila indignou-se com a fixação do adversário em lembrar aos eleitores o caráter comunista do PCdoB, enquanto os adeptos de Boulos focaram numa distinção (fantasiosa, pois inexistente na legislação brasileira) entre invasão e ocupação de propriedades. Ora, se a candidata comunista não quer ser assim identificada e o candidato líder de movimento de invasão não quer ser visto como ameaça à propriedade, fica evidente que ambos reconhecem a rejeição dos eleitores a esses elementos-chave de sua identidade política. Em nenhum momento o PCdoB reconheceu o fracasso do comunismo, nem o PSOL reconheceu a ilegalidade das invasões; criticar os adversários por fixar-se nesses pontos seria o mesmo que Bruno Covas tentar proibir Boulos de atacar sua condição de vice e afilhado de Dória, de candidato do continuísmo, do PSDB como o partido dos prefeitos que não terminam o mandato. O choro é livre, mas faz parte do jogo expor a vulnerabilidade do adversário – e aceitar quando os eleitores não compram sutilezas semânticas infantis. Ao revoltar-se pelo fato dos adversários repetirem à exaustão a ladainha de seu apoio às ditaduras cubana e venezuelana (que, aliás, sequer reconhece como ditaduras), Boulos foge ao problema principal (assim como D’Ávila ao procurar esconder o comunismo de seu partido): afinal, ele endossa ou não esses valores? Ao apoiar a farsa institucional da Venezuela, por exemplo, esse é o seu modelo para o Brasil? Recusar-se a essa discussão – porque sabe que lhe custaria a imagem de moderado e uma parcela não desprezível de votos – só demonstra o quanto a nova esquerda segue velhíssima; incapazes de reconhecer as tragédias promovidas pelos seus herois, exibem na verdade o comprometimento de uma modernidade insincera. Mobilizar a sociedade para alterar a legislação no Congresso (e na Câmara Municipal) e enfrentar a especulação imobiliária, elevando alíquotas de IPTU, assegurando celeridade à expropriação dos devedores/especuladores e restringindo o crédito subsidiado à moradia popular (hoje, recursos da poupança financiam os apartamentos comprados por investidores que vivem de aluguéis…) seria infinitamente mais trabalhoso (e menos midiático) do que invadir imóveis desocupados – mas provaria um compromisso real com a democracia e a legalidade, talvez transcendendo o eleitorado algodão-doce. Mais do que promover ações antissistema – prometendo um mundo novo e feliz desde que o velho seja posto em ruínas – negociar saídas e alternativas para os problemas concretos; sem sabor de aventura ou rebeldia, menos latino-americano e mais tediosamente escandinavo… Devemos prestar grande atenção a Belém, cidade de 1,5 milhão de pessoas onde um candidato do PSOL foi vencedor; seu desempenho poderá ser um parâmetro das expectativas em relação às esquerdas daqui por diante.

Seguimos precisando de uma esquerda democrática, que tenha deixado o século XX para trás; quando o desemprego se aproxima de 15% da população e o prefeito reeleito suprime o jantar nos restaurantes populares da cidade, a sociedade precisa daqueles que denunciem e proponham soluções – que não sejam a contratação de mais funcionários públicos. Entre o fetiche da direita pelo Mercado e da esquerda pelo Estado, são as pessoas que seguem ignoradas, esperando ser atendidas por empresas matreiras ou pelo funcionalismo privilegiado. Ainda não foi dessa vez que demos algum passo rumo ao futuro; resta cuidar do presente, o melhor que pudermos. Quem sabe na próxima?

Leandro Gonsales Ciccone
dezembro de 2020

SÃO PAULO: ELEIÇÕES 2020 (3)

E eis que o segundo turno paulistano reúne a centro-direita e a esquerda, vários tons abaixo da histeria de 2018 (ao menos por enquanto). Paraquedistas e populistas – e algumas boas opções – ficaram pelo caminho; velhas táticas reaparecem nas redes sociais, enquanto a imprensa repercute declarações e propostas de candidatos. Qual é o cenário diante de nós?

Na primeira entrevista depois dos resultados, Boulos foi preciso ao menos num ponto: uma vitória de Covas representará a mesmice. Os tucanos não foram capazes de renovar suas ideias e iniciativas ao longo dos últimos 25 anos no governo do estado – tampouco nas suas gestões na capital. Ao menos até aqui, Bruno Covas pouco lembra o avô de quem herda o sobrenome – na verdade, lembra mais seu vice e sucessor, Alckmin (o que está longe de representar um elogio). Medidas questionáveis tem sido lembradas, como o cancelamento do programa Leve Leite para milhares de crianças (apesar do pagamento feito a todas as famílias de crianças da rede municipal, transferindo a elas os recursos da merenda escolar durante a pandemia); o mesmo em relação às doações de empresários da construção civil à sua campanha (somando quase um milhão). Seu vice (por imposição de Dória) foi uma escolha demasiado infeliz; as denúncias a que responde conseguem a proeza de enfraquecer a candidatura do titular. O apoio de Russomano e Hasselmann, por sua vez, despertou revolta e reações sobre a adesão da direita; mas nada que se compare à aliança entre petistas e bolsonaristas em Recife contra o herdeiro do clã local (de esquerda…).
Covas é questionado por questões discutíveis; mas a crítica de Boulos mencionada acima é inquestionável. Só se pode esperar mais do mesmo de um novo governo tucano.

Boulos é a novidade dessa eleição – e figura ascendente entre as esquerdas, mesmo se não for vitorioso. Para muitos, encarna a necessidade de mudança; para outros, a retomada de uma ofensiva das forças ditas progressistas perante a direita troglodita. Já analisamos os pontos principais de sua figura e de seu contexto [ver SÃO PAULO: ELEIÇÕES 2020 (1)]; agora cabe discutir a perspectiva de um governo liderado por ele. Sem dúvida, haveria uma mudança importante de paradigmas – principalmente no que diz respeito à ocupação dos espaços da cidade. Se tomarmos os governos de esquerda anteriores como referência – Erundina, Marta, Haddad – podemos prever ao menos o aumento dos ambulantes e dos sem-teto nas ruas, sendo suspensas as operações da GCM contra esses grupos; pelo mesmo motivo, pode-se esperar também a expansão das cracolândias, associada a programas focados no consumo de drogas como questão de saúde pública. No plano dos serviços urbanos, medidas drásticas devem ser anunciadas nos setores de transportes, educação e saúde, mas com resultados semelhantes – as famosas “ciclovias” pintadas sobre o asfalto esburacado e ligando o nada a lugar nenhum (apenas nos bairros de classe média) são um parâmetro. Parece pouco provável que Boulos enfrente temas essenciais, como o da especulação imobiliária, levando em conta sua base eleitoral nas classes média e média-alta; ousaria ele elevar o IPTU de seus apoiadores em Higienópolis, por exemplo? Contudo, o que parece mais grave é a compreensão irracional sobre os problemas reais da cidade, demonstrada de maneira exemplar no episódio da previdência municipal. Quando propõe como solução para o déficit previdenciário a contratação de mais funcionários públicos, Boulos não demonstra apenas ignorância contábil e estupidez matemática: expõe a visão da gestão pública que nos levou à catástrofe do governo Dilma. Definir prioridades orçamentárias é parte essencial da negociação política; criar fantasias com recursos inexistentes ou manipular os balanços é o ranço ideológico daqueles que se recusam a lidar com a realidade [ver SOBRE ORÇAMENTOS]. Quem propõem gastar mais dinheiro para recuperar dinheiro perdido são os viciados em mesas de jogo; fora dos cassinos, esse não chega a ser um argumento. Pretender como política de governo a contratação de mais funcionários ou a criação/recriação de estatais é insistir na ponta errada do problema: o Estado não existe em função de si mesmo (e dos salários e benesses de seus agentes), e sim como provedor de serviços aos cidadãos. Se mais burocracia resolvesse problemas, os brasileiros teriam padrão de vida escandinavo…

Muitos dos eleitores de Boulos justificam sua escolha como uma chance à mudança. Como dissemos, essa é uma crítica justíssima aos tucanos; sua incapacidade de renovar-se é notória. E é um direito essencial na democracia tentar algo novo, testar uma nova liderança (mesmo inexperiente). Foi a justificativa de muitos para votar em Dilma ou Bolsonaro – ou, no caso de São Paulo, em Erundina, Marta, Dória ou Pitta. Devemos comemorar o fato dessa eleição ter revelado novas possibilidades; devemos preservar a civilidade que tem sobrevivido até aqui, longe da militância histérica que tanto envenenou essa nossa democracia imatura. O governo da cidade não se resume ao prefeito; vencendo Covas, há que se fazê-lo ir além; vencendo Boulos, há que se trazê-lo à realidade. Eleições não são guerras… A verdadeira batalha é a vida cotidiana nessa metrópole caótica; é nisso que precisamos conseguir algumas vitórias.

Leandro Gonsales Ciccone
novembro de 2020

SÃO PAULO: ELEIÇÕES 2020 (2)

Depois de uma breve análise dos quatro candidatos mais bem posicionados nas pesquisas [ver SÃO PAULO: ELEIÇÕES 2020 (1)], é hora de fazer o mesmo com o pelotão seguinte: Tatto, Matarazzo, Do Val e Hasselmann.

Jilmar Tatto é um dos fundadores do PT em São Paulo. Foi figura importante nos governos Marta (2001-2005) e Haddad (2013-2017), principalmente na área de transportes. Exibe Lula da Silva como seu principal cabo eleitoral, tentando resgatar votos e apoios perdidos pelo partido nos últimos anos. Tem propostas exequíveis, principalmente na área social, numa candidatura muito mais sólida em termos de planos e experiência do que a de Fernando Haddad, em 2012/2016. Mas não pode escapar ao peso do partido e à sua rejeição na cidade. A situação desta disputa, com três candidaturas de esquerda competitivas (Boulos, França, Tatto) – além de outras duas (Silva e Helou) sem perspectivas de vitória – e o PT ficando de fora da disputa pelo 2° turno (algo que ocorreu em apenas três das últimas dez disputas municipais) mostra que a estratégia petista de bloquear alternativas e forçar a submissão das esquerdas ao seu projeto de poder tinha um propósito bastante diferente do alegado. Longe de representar uma unidade de esquerda em torno do principal partido desse campo (como sempre foi defendido por Lula da Silva e seus acólitos), a questão era evitar a perda da hegemonia sobre a agenda dita “progressista”; isolado, o PT amarga a perda das periferias para outros candidatos populistas (de direita) e dos bairros de classe média para a esquerda ideológica (Boulos, principalmente). O gigante tinha pés de barro, afinal… Para a esquerda, é salutar que essa hegemonia se desfaça; para os petistas, surge mais uma oportunidade para a famosa autocrítica de que vêm fugindo desde o escândalo do mensalão, em 2005.

Andrea Matarazzo carrega um dos sobrenomes-chave da metrópole (assim como Eduardo Suplicy, aliás). Foi figura importante do PSDB, ministro no governo FHC e (assim como Tatto, respectivamente) teve papel de destaque nos governos Serra (2005-2006) e Kassab (2006-2013), deixando o partido em 2016 ao ser preterido por Dória na disputa daquele ano, filiando-se ao PSD de Kassab e concorrendo como vice de Marta Suplicy (então no MDB). Tem a prefeitura de São Paulo como uma espécie de obsessão pessoal, entrando pela primeira vez na disputa para prefeito; talvez com um pouco mais de paciência teria sido o candidato a vice de Bruno Covas, com grandes chances de sucedê-lo em 2024… Partilha com Tatto grande conhecimento e experiência dos problemas da cidade; tem um programa de governo menos articulado do que o do petista, mas ainda assim mais próximo de uma estratégia de reorganização da metrópole – tão urgente diante dos desafios não-resolvidos nesses últimos cinquenta anos. Mas não demonstrou a habilidade política (a mescla de cálculo e paciência) que poderia lhe garantir agora ou logo mais a oportunidade pela qual sempre sonhou.

Os dois candidatos seguintes são novatos na política – e no cenário paulistano. Jovens, surgidos dos movimentos de direita que cresceram desde 2013, com forte apelo nas redes sociais e poder de comunicação nos meios digitais, têm entretanto diferenças importantes entre si.

Joyce Hasselmann, apesar de mais velha, é a menos preparada (e de perfil mais populista) entre os dois; propostas como a redução de 20% no valor do IPTU, a ser compensada “combatendo as máfias da cidade”, demonstram a distância ainda necessária a ser percorrida pela militante em seu amadurecimento como candidata e/ou liderança política. Falta-lhe não apenas isso, contudo; a inexperiência pesa contra si, refletida na incapacidade de articular alianças. Mas tem grande potencial sob o discurso demasiado demagógico; enfrentou corajosamente o linchamento moral promovido pelos ex-aliados quando da ruptura com o clã Bolsonaro, é articulada e inteligente, com personalidade e capacidade de convencimento. Mais madura e menos caricata, pode tornar-se uma opção de direita num futuro próximo.

Já Arthur do Val se encaixa melhor num perfil de candidato do século XXI; os vídeos de militante que lhe deram projeção – expondo as debilidades do discurso das esquerdas – demonstram inteligência e capacidade analítica. Ainda incorpora um personagem (talvez por saber depender demais da volubilidade das redes sociais), mas soube transformar seu mandato na Assembleia Legislativa numa vitrine das ideias que defende – algo raríssimo nos padrões brasileiros. Articulado, habilidoso no discurso e no marketing pessoal, comprometido com ideias liberais importantes, tem contra si pontos relevantes, contudo. Além da inexperiência e de propostas frágeis em várias áreas (algo que poderia ser compensado por aliados e apoiadores numa campanha mais profissional – no bom sentido do termo), sua campanha exclusivamente em primeira pessoa e seu confronto com o DEM, partido onde se elegeu, seguido da sua filiação ao Patriota – legenda de aluguel que deve seu nome ao flerte frustrado com Bolsonaro em 2018 – demonstram um voluntarismo individualista extremamente negativo. Liderar um projeto articulado e apoiado por pessoas de talento seria a essência do político que pleiteia cargos executivos; e isso, decididamente, lhe falta. Mas tem apenas 34 anos; é de longe a figura mais promissora nessa eleição, tendo amadurecido significativamente entre 2018 e 2020. Imenso potencial de liderança na centro-direita.

Na linha das boas notícias dessa eleição, o surgimento de novas forças e lideranças se destaca; se os candidatos ainda peçam por uma ausência geral de planos e visões para a metrópole – factíveis e de longo prazo – e pela carência de uma conexão maior com a realidade paulistana (demasiado presos a perspectivas de gabinete, à exceção de Tatto e Matarazzo), demonstram contudo respeito pela ambição de chefiar uma das maiores cidades do mundo – sem reduzi-la a trampolim para vaidades outras, incluindo caudilhos vaidosos de si mesmos. Que São Paulo encontre um prefeito à altura de sua grandeza; já é mais que tempo.

Leandro Gonsales Ciccone
novembro de 2020

SÃO PAULO: ELEIÇÕES 2020 (1)

Chegamos à décima eleição municipal desde o fim da ditadura militar. Já passamos por experiências traumáticas – da cidade tomada por camelôs do período Erundina (1989-1993) ao abandono geral do período Celso Pitta (1997-2001). Já ressuscitamos carreiras de populistas de direita (Jânio em 1984, Maluf em 1992), já elegemos prepostos de populistas de esquerda (Haddad em 2012), já servimos de trampolim para tucanos ambiciosos, um deles com inegável vocação populista farialimer (Serra em 2004, Dória em 2016). Pelo retrospecto, impossível evitar a ansiedade sobre o que nos reserva 2020. Tentemos avaliar os principais candidatos (Russomano, Covas, França e Boulos, os quatro primeiros colocados, neste texto, e Matarazzo, Hasselman, Do Val e Tatto, os quatro seguintes, no próximo) – e cruzemos os dedos.

Celso Russomano requer poucas palavras. Nessa terceira tentativa à prefeitura, mesmo contando com patrocínio de Bolsonaro e com a maré montante conservadora, repetiu o desempenho das campanhas anteriores: início em vantagem (liderança garantida por sua exposição na TV e sua fama de xerife do consumidor), queda contínua a partir do confronto efetivo com os adversários. Suas estratégias demonstram improviso, suas entrevistas expõem despreparo. Cabe lembrar que, dessa vez, foi a pressão do atual presidente que o fez entrar na disputa – as articulações iniciais eram para que entrasse como vice de outra chapa, talvez de Bruno Covas. Salvo alguma reviravolta improvável, a tendência é que saia inclusive desse pelotão de líderes nas pesquisas nos próximos dias. Parece que São Paulo está escapando de um Crivella.

Bruno Covas desponta como um dos prováveis adversários num segundo turno. Neto de um dos fundadores do PSDB, prefeito por conta da trampolinagem de João Dória, teve uma gestão mais apagada até o final de 2019; o tratamento de câncer (sem que se afastasse do cargo) e a gestão do caos na pandemia lhe deram visibilidade. Mostrou-se à altura do desafio de gerir uma situação sem paralelo; mesmo quando tomou decisões equivocadas – como o bloqueio de vias ou o rodízio em dias alternados para tentar ampliar os índices de isolamento – recuou prontamente quando essas medidas se mostraram inadequadas, com uma humildade pública raríssima nesse Brasil do século XXI. Repetiu a estratégia de alianças de Alckmin em 2018 – mas aparentemente com o sucesso que faltou àquele; tem divulgado ações nos bairros até então ignoradas. Mas lhe falta um projeto de cidade – uma conjunto de prioridades claras que façam a diferença no futuro dos paulistanos. Claro que não se trata de peças de marketing eleitoral como o Arco do Futuro de Haddad (tão factível quanto o aerotrem de Levy Fidelix); mas seguimos precisando de um planejamento para a metrópole que não nos leve a reboque das necessidades imediatas. Esperar por um Prestes Maia ou um Faria Lima é ambição demasiada? Um Jaime Lerner? De todo modo, Covas escapa à polarização estúpida em que seguimos imersos; seria uma opção de centro-direita, com méritos.

Márcio França busca aproveitar o desempenho da eleição de 2018 (quando venceu Dória na capital). Representa uma liderança significativa do PSB, a alternativa de esquerda democrática mais viável no Brasil de hoje – mas ainda demasiado dependente do clã Arraes-Campos em Pernambuco. Prefeito bem-sucedido de São Vicente, o que lhe garantiu mandatos de deputado federal e projeção politica, França é articulado, com experiência administrativa e capacidade de negociação; foi vice de Alckmin no governo do estado, numa aliança PSB-PSDB que aproximou os tucanos da centro-esquerda e contribuiu para enfraquecer o PT no estado, elevando pela primeira vez um político de esquerda ao governo paulista (por nove meses). Encaixa-se entretanto nas mesmas carências de Bruno Covas; falta-lhe uma visão de cidade, um conjunto de projetos que definam o futuro da metrópole onde mais da metade da população afirma desejar viver em outro lugar – mais do que o dínamo do país, São Paulo precisa ser também uma metrópole dinâmica para os próprios paulistanos. Foca sua campanha demasiadamente em sua habilidade de “resolver problemas”, sem que se possa entender exatamente quais seriam suas iniciativas para a cidade. Seria uma opção de centro-esquerda, também alheio aos extremismos de nossos dias, com discernimento e traquejo político.

Guilherme Boulos é a grande surpresa desta eleição. Seus porcentuais de intenção de voto (juntamente com os de França) sinalizam a saturação do eleitorado de esquerda em relação ao PT – algo em si positivo, uma vez que foram as estratégias e abusos petistas que abriram caminho para a ascensão bolsonarista. Seus eleitores – jovens de elite e de classe média principalmente – são os órfãos da utopia socialista, cronicamente inviabilizada sob o populismo autoritário de Lula da Silva e seus prepostos. Repete o fenômeno em si mesmo; de origem abastada, militante em tempo integral, mas sem apoio nos populares que alega defender e/ou representar. Jamais explicou a cobrança de aluguéis pela entidade que lidera nas ocupações de imóveis da cidade (procedimento semelhante ao das abominadas milícias cariocas…), e apresenta propostas vagas, sem metas definidas nem ações específicas. Encaixa-se no perfil de uma esquerda tradicional, ideológica, que enxerga uma sociedade fraturada pela desigualdade (efetivamente brutal na mais rica cidade do país), e assume promessas na direção dos mais pobres, ignorando deliberadamente os demais grupos como privilegiados. Misto de tática e dogma, não se reflete contudo em votos nas periferias – em tese, as maiores beneficiárias de uma vitória sua. Como principal crítica prática, reitera o tradicional desapego da esquerda com os números; não é capaz de explicar de onde viriam os recursos para seus projetos – e nem como implementar aqueles que dependem de mudanças na legislação estadual ou federal. Ter Erundina como sua vice (cuja honradez e credenciais democráticas são inatacáveis, e muito superiores ao seu desempenho na chefia do executivo) confere densidade à sua chapa, mas espelha o mesmo tipo de obstáculos encontrados por ela há mais de trinta anos. Boulos é articulado e tem personalidade própria, e sua juventude pesa a seu favor. O amadurecimento pode lhe trazer ao longo dos anos a experiência de realidade e as habilidades de negociação e diálogo que se contraponham ao dogmatismo ideológico. Seguimos precisando de uma esquerda capaz e democrática; ainda que não o seja agora, poderá sê-lo um dia. Nesse momento, disputa com chances uma vaga no segundo turno; caso não consiga, sua postura em relação aos candidatos possíveis (apoiaria Covas ou França contra Russomano, por exemplo?) indicaria possibilidades nesse sentido.

Ao menos por enquanto, a eleição municipal paulistana nos rende um consolo: apesar das histerias do nosso tempo, resta algum pluralismo no debate político. Há mais candidatos com perspectivas do que em 2018; diferentes correntes de opinião obtiveram espaço nas campanhas. Razão para esperanças – ainda que modestas.

Leandro Gonsales Ciccone
outubro de 2020

BOLSONARO E SEUS FASCISTAS

Em lances sombrios da tragicomédia nacional, chegamos a assistir à convocação da militância de direita contra as instituições, tendo o Congresso Nacional e o STF como alvos principais. Ainda mais grave do que a convocação em si, a iniciativa já partiu do próprio presidente da República, que endossou mais de uma vez com sua presença os pedidos de retorno à ditadura militar. Sinais de prevalência da dimensão fascistóide do governo? Em que ponto estamos?

O poder desfrutado pelos devotos do autodenominado filósofo Olavo de Carvalho sempre incomodou aqueles dotados de inteligência; sua lógica cruzadística de Brancaleone manteve um tom de humorismo involuntário em meio à estupidez proverbial de seus indicados nas Relações Exteriores, no Meio Ambiente, na Educação e na Cultura. Lamentava-se a mediocridade, questionava-se o atraso que esses indivíduos (e a visão de mundo que os move) provocava em setores tão importantes – mas não se tratava de nada muito diverso dos últimos vinte anos. Boçais de direita substituíam os de esquerda na gerência do caos. Mas quando o dramaturgo (então secretário da cultura) encena um discurso de Goebbels em vídeo para as redes sociais, cruza-se um limiar: o nazifascismo tropical em versão mambembe ousava dizer seu nome. A repercussão desastrosa (inclusive internacional) custou-lhe o cargo – mas não eliminou a sensação de que algo se rompera nas aparências.

Em tempo: há que se criticar o dirigismo cultural, tão instrumentalizado sob os governos petistas. Afinal, o predomínio das esquerdas ideológicas no campo cultural (e educacional) bloqueia representação de visões alternativas – como a conservadora, ou a liberal, ou mesmo a das esquerdas democráticas. O discurso do então secretário desperta indignação (correta) contra a teatralização nazifascista, e igualmente contra os argumentos em favor de uma estratégia de propaganda nacional-conservadora; mas, como de hábito, tal indignação é altamente seletiva. Aqueles que emudecem quando os figurões petistas ou assemelhados exaltam os ditadores execráveis (Fidel, Maduro, Stalin…) e que não viram problema no patrocínio público à hagiografia Lula, o Filho do Brasil (indicada pelos então burocratas da Cultura para representar o país na premiação do Oscar!) tem escassa credibilidade como críticos… Desgraçadamente, aparelhamento e ideologização deveras existem; pretender substituí-los pelo seu oposto no espectro ideológico ilustra a imbecilidade dos tempos em que vivemos. A cultura não deve ser “nacional”, nem conservadora, nem “progressista”, nem qualquer outra bobagem fundamentalista do tipo – deve ser plural e livre (por isso mesmo, sem depender do colo do Estado); mas nossa sociedade – e todos os setores da atividade cultural – provavelmente não estão prontos para essa conversa.

Recorrer às táticas diversionistas de mobilização para neutralizar as nulidades do governo é estratégia antiga, de sucesso possível. Substituir a política pela ideologia desvia o foco da sociedade civil da administração para o discurso, mantém a militância (e as oposições) engajadas, esvazia as negociações e compromissos – e, logo, esconde as fragilidades. Equivalente de países periféricos às guerras de campanha das grandes potências: inimigos internos prestam-se a isso tanto quanto os externos. Nesse cenário, os constantes choques com a imprensa, os partidos e as instituições devem ser vistos como estratégia, não acidente. Declarações de ministros como Augusto Heleno são provocações, não inconfidências; as falastrices de Eduardo Bolsonaro e seus irmãos devem ser vistas como testes, não mera estupidez. Recuos e mentiras vão testando o terreno, numa deriva do autoritarismo conservador para algo cada vez mais extremista.

Nosso drama não é identificar se o atual governo tem ou não componentes fascistas; a resposta, bastante clara, é que sim (em posições importantes, e com apoio de setores da sociedade). Mas vale insistir num ponto: isso não significa que o fascismo esteja a instalar-se entre nós – ao menos por ora. O verdadeiro dilema está em como se comportarão os grupos de apoio de Bolsonaro, especialmente os militares (sob cuja tutela o governo hoje funciona) e o famoso Centrão (cujo oportunismo político e fisiologismo profissional tende ao status quo, afastando aventuras ideológicas); nossa democracia estará seriamente ameaçada se esses dois grupos decidirem-se a patrocinar um regime de força – aliança semelhante permitiu que o golpe de 1964 se desdobrasse numa ditadura de duas décadas. A notícia positiva é a dissociação entre os grupos lavajatistas e bolsonaristas – o que pode significar um descolamento entre o eleitorado conservador e o Grão-Palhaço; mesmo com sua adesão aos esquemas de vale-voto do tipo Bolsa Família / Renda Brasil (e, logo, sua conquista das massas), trata-se de um comprometimento não desprezível. Vimos a pretensão totalitária petista (controle da mídia, cooptação via corrupção institucionalizada, militância plebiscitária via fóruns e conselhos, e quetais) ser contida pelas oposições e pelos próprios aliados de coalizão, além de ser combatida pelas instituições e pela imprensa. E agora?

Continua sendo essencial manter o discernimento; a histeria só atende aos interesses dos extremistas. Aceitar seus discursos – e suas estratégias – não irá livrar-nos dessa situação sombria. A defesa de nossa democracia sitiada exige a combinação frágil de tolerância e firmeza, sem sacrifício de nenhuma delas; recusar os regimes trogloditas, sem permitir a hegemonia do caos. Nem todas as sociedades possuem a maturidade necessária para isso, infelizmente; já fracassamos antes, enfrentamos agora outra provação tremenda. Não poderemos contar nem com os militantes (imersos em suas guerras particulares) nem com as massas (sempre disponíveis à cooptação de um panis et circensis redivivo); o caminho passará por nós mesmos, a maioria silenciosa – como sempre. Que estejamos à altura.

Leandro Gonsales Ciccone
outubro de 2020

SOBRE ORÇAMENTOS

– Bolsonaro, Guedes e as Contas Públicas

Em Brasília, arma-se nova aventura ciclística. O ex-ultraliberal Paulo Guedes (ver GUEDES E SEUS TROPEÇOS), ora convertido em bobo da corte do Grão-Palhaço, busca soluções criativas para a nova versão do vale-voto, cujo nome fantasia passará de Bolsa Família para Renda Brasil (ou algo do tipo). Depois das propostas antipovo de praxe – incluindo um congelamento do salário mínimo – a estratégia agora é pedalar os precatórios (dívidas judiciais federais) e talvez desviar recursos do Fundeb (repasses para o financiamento da educação de estados e municípios). Se manipular contas públicas continuar sendo argumento para impeachment, hora de preparar as panelas.

Por trás dessas contabilidades esotéricas, dois problemas: um político (e social) e outro econômico (e financeiro). O primeiro é clássico, não merece que nos detenhamos muito; investindo nos programas de transferência de renda, Bolsonaro pretende apossar-se do curral eleitoral petista, pavimentando sua reeleição. Sua aliança com o velho Centrão conservador e fisiológico (muito mais à vontade com ele do que com Lula e Dilma, verdade seja dita) e a disparada em seus índices de aprovação garantida pelos “mil dólares” do auxílio emergencial são o roteiro mais do que previsível de uma ressurreição política semelhante à do Molusco em 2005. Os brasileiros surpreendem pouco… Mas é no segundo problema que devemos centrar esta análise.

Temos um Estado-Pantagruel. Seu apetite insaciável devora quase 40% da riqueza nacional todos os anos, essencialmente para seu próprio uso. Só a folha de pagamento do funcionalismo nos três níveis de governo, junto com suas aposentadorias e pensões (verdadeiras responsáveis pelo rombo da Previdência) consome mais de 70% dos orçamentos públicos (ou quase 30% do PIB). Somadas as demais despesas e repasses obrigatórios – apenas o Congresso Nacional consome quase R$ 7 bilhões ao ano (mais do que o orçamento da maioria das cidades brasileiras) – fica claro que o Estado se tornou um fim em si mesmo. Lula da Silva e sua Criatura incorporaram quase meio milhão de novos funcionários, e mais de R$ 1,5 trilhão de dívida pública, a esse banquete (sim, o mesmo Lula que disse ter pago a dívida brasileira, num episódio anterior de mentira presidencial). E antes que alguém esbraveje sobre os juros da dívida, vale lembrar que não os pagamos desde 2014, sob o desgoverno Roussef; desde então, estamos emitindo novos títulos para pagar os juros dos anteriores… Não por acaso, a dívida pública total se aproxima de 100% do PIB…

Todos os grupos de pressão e de interesse querem mais recursos; das universidades federais às polícias, do SUS às obras públicas – a demanda por verbas é universal. Contudo, apesar da extorsão cotidiana sobre os contribuintes, as contas públicas seguem em déficit crescente – sem que vejamos sequer a sombra desse dinheiro. Os brasileiros vivem sob padrões de serviços públicos e infraestrutura de países africanos – mas com carga tributária escandinava… Várias isenções fiscais – do patrimônio de igrejas ao pagamento de dividendos – desequilibram as receitas; privilégios inacreditáveis (e manipulações, e sonegações) permitem que os mais ricos praticamente não paguem impostos. Essa aritmética não fecha.

As esquerdas consideram o déficit público (e, em casos mais patológicos, a própria inflação) como o preço a pagar pelo desenvolvimento. Ainda estamos mergulhados na catástrofe provocada pela última “presidenta” que seguiu por essa trilha. Já os liberais e conservadores – aqui inclusos os analistas do mercado – entidade ectoplasmática que dubla os interesses da especulação financeira sob o respeitável manto de investidores e empresários – consideram a despesa pública em si como fator desestabilizador do crescimento econômico. Entre esses pólos, as contas públicas seguem numa jornada de fantasia.

Calculadoras não fazem milagres. Remanejar verbas entre setores, definindo prioridades, é um caminho. Abolir privilégios e isenções fiscais, outro. Aumentar impostos (sobre aqueles que deles escapam), outro. Seja nas receitas, seja nas despesas, as contas precisam fechar – sem pirotecnias. Esse não é o domínio das discussões sobre desenvolvimento e justiça social; tudo isso define prioridades, mas não pode fabricar números. Independentemente de visões econômicas e projetos político-sociais, um país precisa ser capaz de manter um orçamento equilibrado – para não se tornar prisioneiro da emissão de títulos públicos ou de moeda (ou de ambos…). A ideologia deveria terminar no estabelecimento das premissas; daí por diante, discursos e utopias precisam ceder a vez a números e planilhas. Dos movimentos por moradia nas cidades às empresas e suas demandas por desonerações e financiamentos, cabe à política definir para onde os recursos públicos devem ir; mas a implacabilidade das colunas de receita e despesa precisa ser respeitada.

Sociedades minimamente maduras conseguem gerir seus recursos de maneira responsável. Já passou da hora de superarmos a adolescência voluntarista dos gastos públicos movidos por vontades e demandas (e cooptações via vale-voto ou afins). A economia nunca foi uma ciência exata, mas a contabilidade jamais deixou de ser…

Leandro Gonsales Ciccone
outubro de 2020