INVASÃO DA UCRÂNIA (2)

Houve quem imaginasse uma invasão fulminante, seguida de uma rendição sem condições. Provavelmente o próprio Putin esteve entre esses otimistas. Mas uma semana de guerra já permitiu rearranjar algumas circunstâncias [ver INVASÃO DA UCRÂNIA (1)].

A decisão do presidente ucraniano de permanecer em Kiev foi estratégica; impulsionou o moral de suas tropas e dos voluntários que se alistam para a defesa da cidade. Quase um milhão de refugiados já cruzaram as fronteiras, no maior deslocamento humano na Europa desde a Guerra da Iugoslávia, nos anos 1990. Apesar da tibieza, os governos ocidentais estão passando de sanções econômicas a uma iniciativa de embargo efetivo – que surpreendeu a Rússia. Em questão de dias, os fluxos de câmbio e capital já caíram assustadoramente, e a chantagem com o fornecimento de gás aos europeus não surtiu efeito. Vários países próximos fecharam seu espaço aéreo à aviação russa, e os atletas russos estão suspensos de vários eventos esportivos internacionais. Suécia e Finlândia romperam uma política de neutralidade  de décadas e solicitaram adesão à OTAN – sendo de imediato ameaçadas por um Putin indignado. Não somente a guerra não se resolveu com a rapidez esperada; o isolamento russo tornou-se avassalador. Sinal disso é a mudança sutil de posição da China, de um apoio nítido a uma condenação implícita. Para sete dias, não é pouca coisa.

No campo da propaganda e das militâncias, os defensores da invasão russa (de esquerda ou de direita) têm recorrido a outras táticas. Popularizou-se nas repostagens de redes sociais a crítica à “cobertura desproporcional” da mídia ocidental – cujo celeuma com a Ucrânia não se repetiria na África ou no Oriente Médio. Nessa linha de denúncia ao eurocentrismo, o vídeo de um correspondente europeu falando sobre o conflito endêmico nas regiões não-civilizadas veio por demais a propósito. Crítica honesta quanto à mídia, sem dúvida; a diferença de intensidade da cobertura jornalística é notória. Pena que seja usada para a defender a agressão militar a um país soberano; por maiores que sejam as piruetas retóricas, é disso que se trata. E tampouco custa lembrar que o total de homicídios na Suíça,  por exemplo, na última década, é equivalente ao número da cidade de São Paulo num único dia; a violência cotidiana em nossos países atrasados é incompreensível aos europeus ocidentais há pelo menos três gerações (ou mais, em alguns casos); mas não aos americanos, cujas taxas de homicídio superam em três vezes a dos países europeus somados… Isso não exclui os crimes dos belgas no Congo, dos franceses na Argélia, dos ingleses na Índia, ou dos alemães em tantas partes da própria Europa; tampouco elimina a raiz eurocêntrica e xenófoba do argumento, ou a efetiva desproporção da cobertura midiática no drama ucraniano. Mas refletir sobre os vários ângulos de um problema segue sendo o melhor recurso contra a ignorância opinativa.

O que nos leva ao argumento dos defensores de Putin que tem parecido mais sólido, a de uma reação russa ao cerco promovido pela OTAN; a iniciativa da guerra sairia assim das mãos de Putin, que estaria apenas assegurando a proteção das fronteiras russas diante da pressão imperialista ocidental. Até que ponto esse raciocínio se aplica? Há que se destacar o caráter defensivo da aliança, surgida em 1949, diante da ameaça russa então sob a sigla URSS e o discurso comunista/socialista; mas há que se destacar também que as quatro (ou cinco, conforme veremos) ocasiões em que as tropas da OTAN atuaram foram na verdade intervenções sem ataque direto a nenhum dos membros: em 1991, na Guerra do Golfo, reagindo à invasão dos monumentais campos de petróleo do Kuweit pelo Iraque de Saddam Hussein; em 1995 e 1999, na Guerra da Iugoslávia, contra o massacre de bósnios e kosovares pela Sérvia de Slobodan Milosevic; em 2001, na invasão e ocupação do Afeganistão logo após os atentados de 11 de setembro nos EUA, derrubando o Taleban e iniciando a “guerra ao terror”; e, apesar da aliança ter se negado a apoiar os EUA e o Reino Unido em 2003, na invasão e ocupação do Iraque (com a derrubada e execução de Saddam Hussein), a partir de 2012, com a expansão do ISIS que se seguiu ao início da Guerra da Síria, na vasta zona de fronteira sírio-turco-iraquiana – lembrando que a Turquia é membro da OTAN. Em todos esses casos, jamais se poderia alegar “legítima defesa de um estado-membro”; poderiam os russos temer algo semelhante? Não parece difícil explicar as diferenças – militares, mas não só – entre Iraque, Sérvia, Afeganistão e Rússia; dos arsenais nucleares à indústria armamentista, não há padrão de comparação entre o que foram as intervenções no Oriente Médio e nos Bálcãs e o que seria uma intervenção militar na Rússia. Não só os americanos têm plena consciência disso; franceses e alemães ainda não esqueceram a fria recepção que seus soldados receberam em visitas anteriores. Imaginar que de fato exista uma ameaça de invasão ocidental ao território russo é o mesmo que acreditar na possibilidade de uma invasão à China – ou aos EUA. Imaginar que Putin reage à expansão da OTAN por medo pela integridade territorial de seus domínios não combina com o autocrata que ameaçou o mundo com “consequências jamais vistas” em caso de ação euro-americana na Ucrânia. Vladimir Putin pode ser temeroso ou ameaçador, nunca as duas coisas.

Desse modo, retornamos ao ponto de partida. A invasão da Ucrânia representa uma afirmação da hubris nacionalista russa. Manter as ex-repúblicas soviéticas como satélites de Moscou foi a estratégia de Putin desde sua ascensão ao poder, em dezembro de 1999. Ainda que os estados bálticos tenham escapado ao cerco – sendo os primeiros a aderir tanto à OTAN quanto à UE – o objetivo foi no geral alcançado nos demais; ditadores dóceis (vide o caso de Lukashenko na Bielorrússia) representam os interesses geopolíticos do Kremlin no que foi o antigo império dos czares (e do Politburo). A Ucrânia tem vacilado há uma década, desde o movimento popular que derrubou (definitivamente) o fantoche russo Yanukovitch em 2013. Pelo menos desde 2004, uma parcela casa vez mais significativa da opinião pública ucraniana tem se definido pró-Ocidente – e foi nesse contexto que surgiram as demandas por adesão à UE e à OTAN. A história independente da Ucrânia pode remontar à Idade Média – foi em torno de Kiev que se organizou o predecessor do Estado russo – mas foi interrompida ainda no século XIII; do domínio dos khans ao domínio dos czares, os últimos oito séculos foram de subordinação. Esses trinta anos mais recentes são, dessa maneira, algo novo – para ambos. Ucranianos e bielorussos não são apenas étnica e linguisticamente próximos dos russos; sempre foram vistos como parte da Grande Rússia, de Ivan o Terrível a Yosef Stalin (ele mesmo georgiano, aliás). Buscar respostas no Ocidente, na Europa, na OTAN, é saída desonesta para não enfrentar os argumentos internos de Putin sobre as minorias russas no Donbass e a ocupação da Crimeia; nessa lógica de lebensraum, Hitler se sentiria em casa.

Numa semana, pontos importantes foram revistos; mas nem todos. Uma catástrofe nuclear parece remota, assim como uma vitória avassaladora – ou, mais ainda, uma retirada humilhante. Ainda precisaremos falar sobre a Ucrânia um pouco mais.

Leandro Gonsales Ciccone
março de 2022