BOLSONARO E A PANDEMIA

Poucas situações expuseram o despreparo de Bolsonaro de maneira tão evidente quanto a pandemia de coronavírus. Claro, trata-se de uma situação excepcional, cuja gestão desafiaria até mesmo pessoas mais capazes; ainda assim, a tragédia que vivemos nesse ano no Brasil só se compara ao caos provocado pela estupidez triunfante de Donald Trump nos EUA – não por acaso, ídolo e modelo do atual presidente brasileiro. Analisar os principais erros – dentre tantos – cometidos nesse ano pode nos ajudar a entender a crise em que seguimos imersos.

Bolsonaro nunca levou a pandemia a sério. Definiu-a como gripezinha em várias ocasiões (e agora mente ao afirmar que nunca disse isso), boicotando as medidas de proteção e distanciamento – do uso de máscaras à quarentena em si – em confronto direto com os médicos e especialistas; apregoou supostos medicamentos como terapia, confrontando possíveis vacinas com base em falsos argumentos; e, coroando seu desempenho, insuflou a desobediência às restrições em nome de não sermos um país de maricas. Foi contra o auxílio emergencial articulado pelo Congresso – mudando o discurso ao ver-se (injustamente) beneficiado por ele em termos de popularidade; ordenou a manipulação das estatísticas de controle dos casos e vítimas, e transformou o Ministério da Saúde numa arena de disputa política – com três ministros em oito meses, a caminho de um quarto. Em suma, fez todo o possível para transformar a crise gerada pelo coronavírus numa catástrofe – fracassando apenas diante do discernimento (por vezes surpreendente, como no caso de Dória) de governadores e prefeitos. Se dependêssemos apenas dele e das nulidades que o cercam, podemos estar certos de que tudo teria sido ainda pior.

O processo que levou à demissão do ministro Mandetta resume à perfeição nosso drama. Naquele momento, o destaque do ministro ofuscava o presidente – cuja única preocupação é manter-se em evidência – não apenas na imprensa (desprezada por ele), mas principalmente nas redes sociais, seu habitat natural. A campanha vitoriosa de 2018 demonstrou a busca pelo confronto como estratégia do populismo digital; nessa demagogia da era das mídias sociais, suas milícias de influencers e polêmicas vazias são o verdadeiro foco do poder (não o governo). Mas é um erro crer que Bolsonaro compartilhe dessas ideias; não se trata de crenças ou convicções pessoais, como suas guinadas de opinião claramente demonstram. O atual presidente repercute grupos de pressão e amplifica suas teses, limitando-se ao bônus de ser visto como paladino dessas causas. Dessa forma, no caso Mandetta – como em todos os demais – não seria a capacidade técnica e política do ministro, obscurecendo o presidente, que configuraria a verdadeira ameaça. Na verdade, tudo se reduz sempre à mera preocupação com notoriedade/popularidade.

Nessa nova escalada da doença em fins de 2020, a responsabilidade deve ser compartilhada entre o governo infame e a massa de cidadãos (muitos deles jovens que se opõem furiosamente ao atual mandatário) rompendo com as restrições dos especialistas e aglomerando-se alegremente em bares, festas, ruas de compras… Nessa leviandade negacionista, o que separa esses jovens do presidente que odeiam são apenas alguns meses de discurso. Mas a estupidez do povo não poderia servir de escudo à estupidez do governo; e o novo round desse campeonato irracional passa pela questão da vacina.

Disputas políticas à parte – com Dória patrocinando uma vacina (em parceria com laboratório chinês) que não é considerada como alternativa pelos países desenvolvidos, e anunciando um calendário de vacinação antes mesmo do imunizante ser aprovado… – o governo Bolsonaro soma mais um fracasso à sua já extensa lista. Contrariando o discernimento mais elementar das nações civilizadas (que encomendaram vacinas de todos os laboratórios com pesquisas e testes avançados), o atual governo brasileiro centrou suas apostas numa única alternativa, a britânica Astra-Zeneca/Oxford, que ainda não pôde apresentar resultados conclusivos. Vale lembrar que o governo britânico (também chefiado por um populista de direita, mas dotado de suficiente inteligência), único até agora a iniciar a vacinação em massa no Ocidente, está utilizando a vacina germano-americana Pfizer, sem o menor pudor nacionalista… Pressionado por todos – da opinião pública aos empresários (muitos dos quais seus aliados) – Bolsonaro agora tenta acertar a compra das vacinas Pfizer, num atraso que deve comprometer nosso ano de 2021. Decisões que deveriam ser tomadas por critérios racionais prestaram-se à demagogia de um grupo político cujas alucinações seguem comprometendo nosso presente e nosso futuro.

Se há o que agradecer nessa situação, é apenas o fato de que a visão econômica não-intervencionista da atual gestão permitiu uma recuperação econômica muito mais acelerada do que se poderia prever – um governo petista teria apenas multiplicado nosso endividamento, contratando mais milhares de funcionários públicos e iniciando outras obras faraônicas… Coube ao Congresso atenuar os efeitos sociais da crise, numa complementaridade até aqui benéfica – outro motivo para impedir o controle da Câmara e do Senado por aliados bolsonaristas.

Mas o nosso drama permanece. O problema dos medíocres é estarem sempre à sombra – e não há Weintraubs nem filhos suficientes para garantir-lhe ilusões de grandeza. Em lugar de um país de maricas, o que temos é um governo de imbecis (e não é de hoje…); crises monumentais como a da pandemia de coronavírus expõem essa realidade de maneira cruel, mas a gestão cotidiana dos problemas comuns transmite a mesma mensagem. Soluções mágicas não aparecerão das urnas,  ao contrário do que creem os messiânicos; devem ser buscadas a cada dia, nas votações parlamentares, nas iniciativas de prefeitos e governadores, nas decisões judiciais, na pressão da opinião pública, nos debates na imprensa. Mais do que nunca, impossível escapar à necessidade de sermos responsáveis pelo destino de nossa sociedade e de nosso país; essa responsabilidade segue intransferível. Cabe-nos assumi-la.

Leandro Gonsales Ciccone
dezembro de 2020

SÃO PAULO: ELEIÇÕES 2020 (4)

Bruno Covas e seu PSDB saíram vitoriosos afinal, preservando o governo da maior metrópole do país. Num balanço nacional, a centro-direita consolidou-se (com destaque ao DEM), e uma direita conservadora parece tomar forma mais clara, capitaneada pelo Republicanos – partido evangélico que, apesar da perda do Rio de Janeiro com a derrota de Crivella, passou de nanico à lista dos dez maiores do Brasil; a esquerda preservou bastiões importantes, como o PSB no Recife (numa luta fratricida com o PT, cada vez menor nos grandes centros), e enfrentou derrotas importantes com o PCdoB em Porto Alegre e com o PSOL em São Paulo. Contrariando 2018 e seu discurso antipolítica, 2020 premiou as velhas elites dirigentes. Covas promete ser “um rebelde dentro do PSDB”, numa demonstração de humor involuntário; com seus aliados derrotados nas urnas, Bolsonaro comemora as vitórias do Centrão, seus novos amigos de ocasião.

Essa foi mais uma campanha intensa nas redes sociais, confirmando a tendência desses novos tempos. Postagens de campanha foram repassadas pelos apoiadores (verdadeiros robôs humanos) e ganharam capilaridade num efeito multiplicador. Investigações recentes confirmaram as denúncias de que vários dos autodenominados influenciadores digitais bolsonaristas são pagos (com recursos de origem ainda a ser rastreada) por sua militância; cabe investigar se apenas as milícias digitais de direita tiveram um esquema desse tipo. De todo modo, Boulos foi incensado por ter obtido a mobilização da juventude (ao menos desses jovens militantes de classe média), e reverteu as críticas do 1o turno ao obter votação mais expressiva nas periferias. Muito se falou de uma quebra geracional, com a eleição de Covas dependendo dos eleitores mais velhos, e prenunciando assim uma futura onda eleitoral de esquerda. Mas não custa lembrar que a atual geração entre 50-60 anos foi adolescente nos anos 1970, e que centenas de hippies viraram yuppies quase sem perceber; ainda que às vezes demore, a adolescência sempre termina…

Falou-se também sobre uma nova esquerda despontando nessa eleição, em tese livre do ônus da defesa acrítica da herança lulista/petista e dos vícios ideológicos da geração anterior. Mas os discursos – e, principalmente, as reações de figuras como Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos – ao longo das campanhas demonstram a fragilidade dessa renovação. D’Ávila indignou-se com a fixação do adversário em lembrar aos eleitores o caráter comunista do PCdoB, enquanto os adeptos de Boulos focaram numa distinção (fantasiosa, pois inexistente na legislação brasileira) entre invasão e ocupação de propriedades. Ora, se a candidata comunista não quer ser assim identificada e o candidato líder de movimento de invasão não quer ser visto como ameaça à propriedade, fica evidente que ambos reconhecem a rejeição dos eleitores a esses elementos-chave de sua identidade política. Em nenhum momento o PCdoB reconheceu o fracasso do comunismo, nem o PSOL reconheceu a ilegalidade das invasões; criticar os adversários por fixar-se nesses pontos seria o mesmo que Bruno Covas tentar proibir Boulos de atacar sua condição de vice e afilhado de Dória, de candidato do continuísmo, do PSDB como o partido dos prefeitos que não terminam o mandato. O choro é livre, mas faz parte do jogo expor a vulnerabilidade do adversário – e aceitar quando os eleitores não compram sutilezas semânticas infantis. Ao revoltar-se pelo fato dos adversários repetirem à exaustão a ladainha de seu apoio às ditaduras cubana e venezuelana (que, aliás, sequer reconhece como ditaduras), Boulos foge ao problema principal (assim como D’Ávila ao procurar esconder o comunismo de seu partido): afinal, ele endossa ou não esses valores? Ao apoiar a farsa institucional da Venezuela, por exemplo, esse é o seu modelo para o Brasil? Recusar-se a essa discussão – porque sabe que lhe custaria a imagem de moderado e uma parcela não desprezível de votos – só demonstra o quanto a nova esquerda segue velhíssima; incapazes de reconhecer as tragédias promovidas pelos seus herois, exibem na verdade o comprometimento de uma modernidade insincera. Mobilizar a sociedade para alterar a legislação no Congresso (e na Câmara Municipal) e enfrentar a especulação imobiliária, elevando alíquotas de IPTU, assegurando celeridade à expropriação dos devedores/especuladores e restringindo o crédito subsidiado à moradia popular (hoje, recursos da poupança financiam os apartamentos comprados por investidores que vivem de aluguéis…) seria infinitamente mais trabalhoso (e menos midiático) do que invadir imóveis desocupados – mas provaria um compromisso real com a democracia e a legalidade, talvez transcendendo o eleitorado algodão-doce. Mais do que promover ações antissistema – prometendo um mundo novo e feliz desde que o velho seja posto em ruínas – negociar saídas e alternativas para os problemas concretos; sem sabor de aventura ou rebeldia, menos latino-americano e mais tediosamente escandinavo… Devemos prestar grande atenção a Belém, cidade de 1,5 milhão de pessoas onde um candidato do PSOL foi vencedor; seu desempenho poderá ser um parâmetro das expectativas em relação às esquerdas daqui por diante.

Seguimos precisando de uma esquerda democrática, que tenha deixado o século XX para trás; quando o desemprego se aproxima de 15% da população e o prefeito reeleito suprime o jantar nos restaurantes populares da cidade, a sociedade precisa daqueles que denunciem e proponham soluções – que não sejam a contratação de mais funcionários públicos. Entre o fetiche da direita pelo Mercado e da esquerda pelo Estado, são as pessoas que seguem ignoradas, esperando ser atendidas por empresas matreiras ou pelo funcionalismo privilegiado. Ainda não foi dessa vez que demos algum passo rumo ao futuro; resta cuidar do presente, o melhor que pudermos. Quem sabe na próxima?

Leandro Gonsales Ciccone
dezembro de 2020