INVASÃO DA UCRÂNIA (2)

Houve quem imaginasse uma invasão fulminante, seguida de uma rendição sem condições. Provavelmente o próprio Putin esteve entre esses otimistas. Mas uma semana de guerra já permitiu rearranjar algumas circunstâncias [ver INVASÃO DA UCRÂNIA (1)].

A decisão do presidente ucraniano de permanecer em Kiev foi estratégica; impulsionou o moral de suas tropas e dos voluntários que se alistam para a defesa da cidade. Quase um milhão de refugiados já cruzaram as fronteiras, no maior deslocamento humano na Europa desde a Guerra da Iugoslávia, nos anos 1990. Apesar da tibieza, os governos ocidentais estão passando de sanções econômicas a uma iniciativa de embargo efetivo – que surpreendeu a Rússia. Em questão de dias, os fluxos de câmbio e capital já caíram assustadoramente, e a chantagem com o fornecimento de gás aos europeus não surtiu efeito. Vários países próximos fecharam seu espaço aéreo à aviação russa, e os atletas russos estão suspensos de vários eventos esportivos internacionais. Suécia e Finlândia romperam uma política de neutralidade  de décadas e solicitaram adesão à OTAN – sendo de imediato ameaçadas por um Putin indignado. Não somente a guerra não se resolveu com a rapidez esperada; o isolamento russo tornou-se avassalador. Sinal disso é a mudança sutil de posição da China, de um apoio nítido a uma condenação implícita. Para sete dias, não é pouca coisa.

No campo da propaganda e das militâncias, os defensores da invasão russa (de esquerda ou de direita) têm recorrido a outras táticas. Popularizou-se nas repostagens de redes sociais a crítica à “cobertura desproporcional” da mídia ocidental – cujo celeuma com a Ucrânia não se repetiria na África ou no Oriente Médio. Nessa linha de denúncia ao eurocentrismo, o vídeo de um correspondente europeu falando sobre o conflito endêmico nas regiões não-civilizadas veio por demais a propósito. Crítica honesta quanto à mídia, sem dúvida; a diferença de intensidade da cobertura jornalística é notória. Pena que seja usada para a defender a agressão militar a um país soberano; por maiores que sejam as piruetas retóricas, é disso que se trata. E tampouco custa lembrar que o total de homicídios na Suíça,  por exemplo, na última década, é equivalente ao número da cidade de São Paulo num único dia; a violência cotidiana em nossos países atrasados é incompreensível aos europeus ocidentais há pelo menos três gerações (ou mais, em alguns casos); mas não aos americanos, cujas taxas de homicídio superam em três vezes a dos países europeus somados… Isso não exclui os crimes dos belgas no Congo, dos franceses na Argélia, dos ingleses na Índia, ou dos alemães em tantas partes da própria Europa; tampouco elimina a raiz eurocêntrica e xenófoba do argumento, ou a efetiva desproporção da cobertura midiática no drama ucraniano. Mas refletir sobre os vários ângulos de um problema segue sendo o melhor recurso contra a ignorância opinativa.

O que nos leva ao argumento dos defensores de Putin que tem parecido mais sólido, a de uma reação russa ao cerco promovido pela OTAN; a iniciativa da guerra sairia assim das mãos de Putin, que estaria apenas assegurando a proteção das fronteiras russas diante da pressão imperialista ocidental. Até que ponto esse raciocínio se aplica? Há que se destacar o caráter defensivo da aliança, surgida em 1949, diante da ameaça russa então sob a sigla URSS e o discurso comunista/socialista; mas há que se destacar também que as quatro (ou cinco, conforme veremos) ocasiões em que as tropas da OTAN atuaram foram na verdade intervenções sem ataque direto a nenhum dos membros: em 1991, na Guerra do Golfo, reagindo à invasão dos monumentais campos de petróleo do Kuweit pelo Iraque de Saddam Hussein; em 1995 e 1999, na Guerra da Iugoslávia, contra o massacre de bósnios e kosovares pela Sérvia de Slobodan Milosevic; em 2001, na invasão e ocupação do Afeganistão logo após os atentados de 11 de setembro nos EUA, derrubando o Taleban e iniciando a “guerra ao terror”; e, apesar da aliança ter se negado a apoiar os EUA e o Reino Unido em 2003, na invasão e ocupação do Iraque (com a derrubada e execução de Saddam Hussein), a partir de 2012, com a expansão do ISIS que se seguiu ao início da Guerra da Síria, na vasta zona de fronteira sírio-turco-iraquiana – lembrando que a Turquia é membro da OTAN. Em todos esses casos, jamais se poderia alegar “legítima defesa de um estado-membro”; poderiam os russos temer algo semelhante? Não parece difícil explicar as diferenças – militares, mas não só – entre Iraque, Sérvia, Afeganistão e Rússia; dos arsenais nucleares à indústria armamentista, não há padrão de comparação entre o que foram as intervenções no Oriente Médio e nos Bálcãs e o que seria uma intervenção militar na Rússia. Não só os americanos têm plena consciência disso; franceses e alemães ainda não esqueceram a fria recepção que seus soldados receberam em visitas anteriores. Imaginar que de fato exista uma ameaça de invasão ocidental ao território russo é o mesmo que acreditar na possibilidade de uma invasão à China – ou aos EUA. Imaginar que Putin reage à expansão da OTAN por medo pela integridade territorial de seus domínios não combina com o autocrata que ameaçou o mundo com “consequências jamais vistas” em caso de ação euro-americana na Ucrânia. Vladimir Putin pode ser temeroso ou ameaçador, nunca as duas coisas.

Desse modo, retornamos ao ponto de partida. A invasão da Ucrânia representa uma afirmação da hubris nacionalista russa. Manter as ex-repúblicas soviéticas como satélites de Moscou foi a estratégia de Putin desde sua ascensão ao poder, em dezembro de 1999. Ainda que os estados bálticos tenham escapado ao cerco – sendo os primeiros a aderir tanto à OTAN quanto à UE – o objetivo foi no geral alcançado nos demais; ditadores dóceis (vide o caso de Lukashenko na Bielorrússia) representam os interesses geopolíticos do Kremlin no que foi o antigo império dos czares (e do Politburo). A Ucrânia tem vacilado há uma década, desde o movimento popular que derrubou (definitivamente) o fantoche russo Yanukovitch em 2013. Pelo menos desde 2004, uma parcela casa vez mais significativa da opinião pública ucraniana tem se definido pró-Ocidente – e foi nesse contexto que surgiram as demandas por adesão à UE e à OTAN. A história independente da Ucrânia pode remontar à Idade Média – foi em torno de Kiev que se organizou o predecessor do Estado russo – mas foi interrompida ainda no século XIII; do domínio dos khans ao domínio dos czares, os últimos oito séculos foram de subordinação. Esses trinta anos mais recentes são, dessa maneira, algo novo – para ambos. Ucranianos e bielorussos não são apenas étnica e linguisticamente próximos dos russos; sempre foram vistos como parte da Grande Rússia, de Ivan o Terrível a Yosef Stalin (ele mesmo georgiano, aliás). Buscar respostas no Ocidente, na Europa, na OTAN, é saída desonesta para não enfrentar os argumentos internos de Putin sobre as minorias russas no Donbass e a ocupação da Crimeia; nessa lógica de lebensraum, Hitler se sentiria em casa.

Numa semana, pontos importantes foram revistos; mas nem todos. Uma catástrofe nuclear parece remota, assim como uma vitória avassaladora – ou, mais ainda, uma retirada humilhante. Ainda precisaremos falar sobre a Ucrânia um pouco mais.

Leandro Gonsales Ciccone
março de 2022

INVASÃO DA UCRÂNIA (1)

A notícia da invasão russa da Ucrânia espalhou perplexidade mundo afora. Nas últimas semanas, muitos entenderam os preparativos de Vladimir Putin como um blefe, um perigoso jogo de nervos com os EUA e seus aliados; mas os sinais estavam claros. Para além da concentração de tropas (o que por si só já deveria ter sido suficiente…), as declarações sucessivas de apoio por parte da China, o desprezo pelas tentativas diplomáticas… Mais uma vez, americanos e europeus decidiram ignorar as movimentações do adversário; mais uma vez, foram contidos pela própria inépcia – e derrotados pela própria covardia. A Ucrânia foi conquistada pela Rússia, e agora os exércitos russos estão às portas da União Europeia (e da OTAN). Outro passo foi dado rumo ao conflito que redefinirá a hegemonia global. E as potências impotentes seguem atordoadas, repetindo a estratégia infantil de sanções econômicas e financeiras. Que sucede?

Não faltaram nos últimos dias os especialistas de redes sociais com suas teorias repassadas. No campo das esquerdas progressistas (cujo fascínio pelo autocrata viril de direita capaz de enfrentar o ocidente burguês imperialista é caso psiquiátrico), multiplicaram-se as menções aos neonazistas ucranianos – um dos grupos do tipo mais numerosos na Europa de hoje; nessa fantasia, Putin torna-se o carrasco da extrema direita apoiada tacitamente pelo Ocidente – por reflexo condicionado, seguem dispostos à defesa do que quer que venha de Moscou, mesmo depois de três décadas de orfandade. No campo das direitas iliberais, Putin é o defensor da civilização cristã contra a aliança espúria entre homossexuais, feministas, estrangeiros e terroristas, que procuram dominar a Europa solapando os valores da tradição e da família… Verdadeiro fenômeno, o ex-agente da KGB seduz os extremos nesse nosso mundo onde o centro político parece condenado à extinção. Analistas menos ideológicos destacam a expansão da OTAN nos últimos vinte anos sobre os antigos satélites soviéticos, e buscam assim justificar tacitamente a invasão como contraponto ao “cerco ocidental”, decisão pragmática de segurança nacional. Outros ainda (um pouco mais histéricos) retratam o neoczar como um desequilibrado munido de ambições expansionistas e arsenais nucleares. Não faltaram mesmo aqueles que consideram a Rússia um mero peão na estratégia da China para a derrubada dos EUA, tirando proveito do vácuo de liderança em Washington; há que reconhecer-se que a tibieza de Biden parece endossar essa possibilidade. Nem todas essas interpretações já apareceram nas redes em português (a tradução às vezes demora um pouco); mas as militâncias de likes já estão a postos.

Primeiro, Putin não é um desequilibrado megalomaníaco; muito pelo contrário. É um calculista frio e astuto, que soube nesses vinte anos criar os meios para reafirmar o poder russo no mundo – e particularmente no seu entorno. A riqueza gerada pelo petróleo e (especialmente) pelo gás comprou lealdades e financiou uma reestruturação militar de larga escala. Em ações anteriores – especialmente na Síria, a partir de 2013, onde afogou em sangue os oponentes do ditador Bashar al-Assad diante da complacência ocidental, e na Crimeia, em 2014, quando invadiu e anexou parte da Ucrânia em troca apenas das sanções de praxe – essa força foi testada e aperfeiçoada. Em paralelo, tropas de hackers transformaram a Rússia na principal potência de cyberguerra no planeta, capaz de colapsar redes e serviços e manipular mídias e eleições. Putin acumulou reservas financeiras e recursos, e soube planejar taticamente o momento de agir – inclusive com a ameaça de uma guerra nuclear em caso de intervenção. Nenhuma dessas características endossa a visão de loucura; mas todas elas demonstram o quanto se permitiu que ele agisse sem restrições.

Segundo, estabelecer nexos entre os devaneios ideológicos desse nosso mundo de fancaria e os movimentos das grandes potências é ignorar que o mundo dos adultos funciona sob regras próprias. Os discursos em defesa da tradição ou em ataque ao imperialismo americano são apenas retórica para as arquibancadas; as decisões efetivas daqueles que detêm poder de fato são calculadas e concretizadas em função de interesses – razoavelmente claros e simples, e não apenas econômicos, mas também políticos; outro erro comum é supor que tudo possa ser reduzido a dinheiro, e que sentimentos coletivos (como orgulho nacional e/ou racial, por exemplo) sejam também meramente retóricos. Considerar que a Rússia está apenas reagindo à ameaça representada pela OTAN ignora dois elementos-chave: que a aliança surgiu precisamente para lidar com a ameaça russa e que os novos países-membros solicitaram adesão, não foram anexados ou invadidos. Uma facção das militâncias digitais chegou a ressuscitar um vídeo de Chomsky (a contraparte de esquerda ao discurso paspalho de Fukuyama sobre o fim da história) questionando a sobrevivência da OTAN após o fim da URSS, para endossar essa perspectiva; algo como abolir a polícia na Suíça por conta da baixíssima criminalidade… A ronda do policial (e o sistema judicial que ele representa) demovem o criminoso, assim como a força militar demove o invasor. Quem já precisou lidar com os russos ao longo da História sabe que o urso às vezes parece inofensivo (principalmente quando ébrio), mas jamais deixa de ser quem é. Mais ainda. Assim como as demais repúblicas da ex-URSS, os ucranianos abriram mão dos arsenais soviéticos alojados em seus territórios em favor da Rússia (herdeira igualmente da cadeira com poder de veto no Conselho de Segurança), num arranjo patrocinado pela ONU e pela própria OTAN, sob um compromisso formal de integridade territorial. Nem é preciso dizer que tal acordo foi ignorado, e que uma Ucrânia ainda nuclear não teria sido invadida. Fora da aliança ocidental e sob coação da potência vizinha a quem cedeu suas ogivas atômicas por insistência desses mesmos ocidentais (em nome da “não-proliferação”), os ucranianos foram os grandes logrados nessas últimas três décadas. Da mesma forma que a invasão do Iraque pelos EUA em 2003, sob o argumento (falso, claro) do controle de armas químicas pelo ditador Saddam Hussein, foi uma violação inaceitável da ordem jurídica internacional (então condenada pelos próprios aliados da OTAN, à exceção de um Reino Unido constrangedoramente apequenado), a invasão da Ucrânia representa uma ameaça flagrante à independência e à soberania das nações mundo afora. A nefanda doutrina da guerra preventiva então evocada pelos EUA equivale aos irados argumentos de defesa e segurança de Putin hoje. O fracasso americano no Iraque, assim como no Afeganistão (suas invasões mais recentes) cobrou um preço elevado em termos de prestígio e capacidade de dissuasão – do qual a escalada russa no leste europeu e chinesa no leste asiático são também consequências. Quando a potência hegemônica se enfraquece, contudo, os desdobramentos são no sentido de rupturas caóticas; quando novas potências se fortalecem, o foco precisa estar no tipo de ordem que pretendem construir.

Terceiro, que Rússia e China agora jogarão em duplas é outro desdobramento deste fim de fevereiro de 2022. Uma invasão semelhante a Taiwan nas próximas semanas não deveria surpreender ninguém. E se a aliança americana no Atlântico já parece inoperante, sua equivalente no Pacífico não passa de frouxos laços de intenções. Russos e chineses souberam acumular meios para reforçar seu poder, e agora impor seus interesses às potências impotentes atônitas. Assistiremos nos próximos anos a novos lances dessa política de apaziguamento versão século XXI; assim como nas vergonhosas concessões anglo-francesas dos anos 1930, a ameaça da guerra parecerá afastada depois de cada nova subserviência, com apenas as vítimas secundárias de praxe. Talvez a invasão da Ucrânia tenha sido o nosso Acordo de Munique; talvez não. Humilhações piores ainda podem surgir no horizonte, a crer na letargia dos nossos tempos. Uma nova relação de poderes no mundo está sendo construída, e uma nova hegemonia surgirá desse rearranjo. Ao longo dos séculos, todavia, isso nunca ocorreu pacificamente; de Sargão de Akkad a Genghis Khan, de Alexandre Magno a Joseph Stalin, novas supremacias sempre se afirmaram pela guerra – em suas variadas formas. Há cinco séculos, Maquiavel chamou a atenção para o fato de que uma guerra não pode ser evitada, apenas adiada; e com preço cada vez mais alto. Podemos ter modificado muito a base material e técnica da vida humana nesses quinhentos anos; mas não alteramos o caráter de nossas sociedades, nem de nossa espécie. O famoso florentino segue sensato. Escolher a covardia é perfeitamente legítimo – é parte da natureza humana, é traço comum dos nossos tempos. Os covardes não deveriam, porém, traçar linhas vermelhas se não pretendem agir quando essas são cruzadas; se a única linha que traçam é marrom, enquanto recuam, devem aprender a lidar com isso. Mas supor que a covardia evitará a guerra é um erro grave, cometido já outras vezes, sempre com o mesmo resultado. Até os covardes acabam por decidir-se a lutar em algum momento – mas sempre o fazem quando o preço a pagar já se tornou impensável. Talvez ainda possamos evitar uma Terceira Guerra Mundial nessa geração; mas não poderemos deixar de lutar as várias guerras que se sucederão nesse caminho; já fugimos de algumas, estamos fugindo de outra nesse exato momento. Não poderemos fugir para sempre.

Leandro Gonsales Ciccone
fevereiro de 2022

GÖTTERDÄMMERUNG

– invasão do Capitólio em Washington

Claro está que muitos deliciaram-se mundo afora com as cenas deprimentes da invasão do Capitólio em seis de janeiro último. Depois de décadas patrocinando golpes e tomadas de poder mundo afora, era a vez dos próprios americanos assistirem à vergonha de suas instituições perante as mídias de todo o planeta. A orgulhosa república dos Founding Fathers sucumbiu por algumas horas diante de uma turba insuflada por um demagogo ensandecido incapaz de aceitar a derrota (humilhante) sofrida nas urnas. E, enquanto isso, milhões se regozijaram mundo afora com a derrocada daqueles sempre tão prontos em ditar regras e impor a ordem em terras alheias – agora claramente incapazes de fazê-lo em sua própria casa.

O regozijo parece inadequado, contudo. Evidenciar o declínio da superpotência ora reduzida a um terceiro-mundismo vexatório é deveras honesto – principalmente diante das circunstâncias. O espetáculo da soberba abatida tem apelo inegável. Mas a satisfação tem um limite claro; todos os que ainda acreditam na democracia foram derrotados e humilhados naquela tarde.

Para além das canalhices praticadas ou endossadas pelos EUA mundo afora – da Emenda Platt à queda de Mossadegh, de Ferdinand Marcos a Pinochet – seus dramas nacionais são evidentes. Pródigos em apoiar mundo afora as democracias que lhes sejam convenientes, os americanos enfrentam desde sempre as contradições dos ideais expressos na Declaração de Independência – e tantas vezes negados na Constituição que se seguiu, e nos sucessivos governos, e na Reconstrução após a Guerra Civil, e nas sociedades sulistas segregadas sob o silêncio cúmplice do norte vencedor. Franklin Roosevelt já violara a regra (então informal) que limitava os presidentes a uma reeleição; apenas a morte o impediu de completar um desabusado quarto mandato. Nixon já tentara censurar a imprensa, sendo forçado à renúncia a partir dos escândalos revelados por ela. Obama foi o presidente mais visado por ameaças de morte na história da nação; e Lincoln e Kennedy não foram os únicos diante dos quais as ameaças se consumaram. Martin Luther King Jr tampouco foi a única liderança da sociedade civil abatida por assassinos; tem toda razão os ativistas negros ao dizerem que uma matilha semelhante de homens de cor (na expressão da mais antiga das suas organizações, a NAACP) que ousasse semelhante ataque ao Congresso teria sido abatida a tiros antes de chegar ao gramado.  Nem o macarthismo dos anos 1950 seria a única época de histeria coletiva do conservadorismo americano, como o trumpismo demonstrou sobejamente. Desde há muito o fundamentalismo religioso alimenta o negacionismo e o obscurantismo nas periferias retrógradas desse grande país. E o cosmopolitismo de suas grandes cidades não esconde seus códigos de exclusão.

Ainda assim, os EUA foram sempre uma referência para as democracias de massas. Gerações de indivíduos engajados impuseram a expansão da cidadania e criaram instituições cuja solidez só se compara à da monarquia parlamentar britânica. Com todos os seus limites e cinismos, a república federativa americana havia sido capaz de sobreviver a traumas terríveis. Todos os herdeiros da tradição liberal-iluminista aprenderam a ver nos EUA uma referência de que o governo do povo, pelo povo e para o povo do pungente discurso de Lincoln em Gettysburg seguia como uma possibilidade nesse mundo imerso em tiranias mais ou menos declaradas. Mas assistimos a um triunfo das sombras naquela tarde de janeiro – mesmo que seus trajes ridículos pudessem inspirar humor involuntário. As fantasias mais bizarras, contudo, não vestiam seus corpos – ocupavam suas mentes. Nessa nova Idade Média que ensombrece cada vez mais os nossos dias, e se precipita num furor que já parece irrevogável, outro marco miliário foi cruzado. Mais do que a alegria pelo crepúsculo dos deuses do capital, os sinos em dobre de finados deveriam acompanhar os noticiários daquele dia; afinal, a última idade das trevas durou mil anos…

Leandro Gonsales Ciccone
janeiro de 2021

TRUMP TO GO

– eleições presidenciais de 2020 nos EUA

Vencedor no voto popular e com votos suficientes garantidos no Colégio Eleitoral, Joe Biden já foi reconhecido como novo presidente dos EUA por todos – exceto, claro, por Donald Trump e seus devotos, alguns além das fronteiras americanas. Ainda sob o risco de recontagem de votos (ou de alguma chicana jurídica) o país não retornou à estabilidade, todavia; inéditos temores sobre uma negação de Trump em deixar a Casa Branca, tendo numerosas milícias armadas como pano de fundo, impedem que se considere essa triste era da história americana como definitivamente encerrada. (ver TERRA EM TRANSE)

Quais seriam os motivos de comemoração do resultado? Para além de Biden ser um centrista em condições psiquiátricas normais, alinhado com o multilateralismo – e o racionalismo – em meio a um mundo em marcha batida para uma nova idade média, que esperar de seu governo? A situação internacional não se altera com o afastamento do isolacionismo infantil de Trump; a ascensão chinesa ganhou corpo durante a pandemia, e o populismo de direita está longe da irrelevância mundo afora, seguido de perto pelo populismo de esquerda e seus saudosistas da escassez planificada homicida. No plano interno, os ódios raciais, a xenofobia e o avanço da pobreza permanecem os mesmos. Ainda mais importante, os interesses americanos (vinculados ao lobby de suas gigantescas corporações e às suas prioridades geopolíticas) serão os mesmos sob democratas ou republicanos. Afasta-se a histeria inconsequente e o negacionismo autista dos últimos anos – mas como os problemas reais do americano médio serão enfrentados por Biden? A votação obtida por Trump surpreendeu a mídia e os analistas, demonstrando que (mais uma vez) ele e o contexto que o tornou possível foram subestimados. O fosso entre a opinião pública organizada e as pessoas comuns segue alargando-se; o compromisso pluralista pela democracia segue enfraquecendo-se. Os EUA de 2020 são ainda mais fraturados – e frágeis – do que os EUA de 2016.

Nunca as pontes foram tão necessárias – mas a sombra dos muros permanece. Os problemas do nosso tempo não podem ser apenas negados; os monstros continuarão atrás das portas mesmo se fecharmos os olhos. O medo não pode justificar a covardia para sempre; hora de abri-los, hora de enfrentá-los.

Leandro Gonsales Ciccone
novembro de 2020

SOBRE BARBÁRIE

– professor francês decapitado por fundamentalista islâmico

Mais uma vítima dos fundamentalistas na França. Um professor de História que ousou exibir charges tendo Maomé como personagem – numa aula sobre liberdade de expressão – foi decapitado em Paris por um jovem checheno (morto em seguida pela polícia). Mais uma vez, multidões foram às ruas em homenagem à vítima dessa animalidade medieval, em nome de valores tidos como basilares da civilização europeia/ocidental. Esses milhares de franceses que protestaram em defesa da liberdade de expressão (e de ensino, e de religião…) não compreenderam todavia que não há mais o que defender; quando um professor é decapitado por contrariar tabus religiosos, essas liberdades já desapareceram.

São aberrações como essa que impulsionam a ascensão da extrema direita xenófoba; são abominações como essa que alimentam os discursos psicóticos dos neocruzados do fundamentalismo cristão. É preciso refletir com cautela e discernimento sobre episódios assim – a incapacidade dos liberais/moderados/democratas em responder a isso abre caminho às bestas-feras de um passado que preferimos distante, os oponentes de mesma natureza do facínora decapitador checheno.

As modernas democracias europeias (e seus êmulos mundo afora) têm tido imensas dificuldades em lidar com a escalada dos extremismos nesse início de século XXI. Dos neonazistas aos neostalinistas, passando pelos militantes das múltiplas facções representativas das minorias organizadas e chegando aos fundamentalistas islâmicos e cristãos, várias sociedades estão a tornar-se reféns dos extremismos totalitários e de seus dogmas. Aproveitando-se dos valores de inclusão e tolerância presentes nessas nações (mesmo que relativos e questionáveis em tantas circunstâncias), esses grupos têm capturado os debates políticos e acuado as maiorias – silenciosas, como de hábito. Marchas e manifestações pela defesa dos valores democráticos não impedem esse movimento; as inúmeras passeatas pela paz no Rio de Janeiro não impediram que a guerra civil cotidiana triunfasse na cidade. Se quisermos defender de fato esses valores, será preciso entender que há um limite para a inclusão e a tolerância; se estas não forem recusadas a alguns, serão perdidas para todos.

Todo aquele que compartilha dos chamados valores ocidentais – as noções de secularismo, igualdade jurídica, liberdades individuais, garantia de oportunidades, resguardo das minorias – tem inúmeros motivos para envergonhar-se do legado de horror deixado nas colônias africanas e asiáticas em nome da pretensa missão civilizatória justificada por eles. O uso desses valores como tapume para interesses (e práticas) inconfessáveis deve constranger e perturbar – mas nunca tais valores em si. A imposição de um modelo ocidental de governo e sociedade mundo afora foi a fantasia brutal de três ou quatro gerações de europeus inebriados pelos cientificismos autocomplacentes da belle époque; não por acaso, fruto da mesma árvore das tiranias totalitárias do século XX, hoje redivivas em novas roupagens. Contudo, tais valores (em si) jamais serão motivo de vergonha. Jamais. Aceitar abastardá-los em nome de um anódino respeito às diferenças é abominável; permitir que outros valores – não apenas distintos, mas opostos a estes – se imponham às próprias sociedades ocidentais é um passo que o futuro nos haverá de recriminar séculos adiante.

Dito de outro modo, há valores que são inegociáveis. O secularismo, produto de séculos de conflitos religiosos e debates filosóficos, é um deles. Reduzir as crenças a uma questão privada dos indivíduos foi uma notável evolução de coexistência e pluralismo; não podemos, jamais, abrir mão disso. Se grupos religiosos (quaisquer que sejam) se considerarem ofendidos com esse princípio, devem procurar sociedades mais de acordo com suas crenças. Imigrar sempre foi a solução para os perseguidos de todas as épocas; pode (talvez deva) ser a saída para os perseguidores em nosso tempo. O decapitador checheno deveria estar vivendo nas montanhas da Síria onde os últimos batalhões do ISIS ainda resistem, e não num subúrbio de Paris. Lá estaria entre os seus iguais, incapazes de acompanhar os últimos mil e quatrocentos anos de história humana. Os aparatos de segurança das nações civilizadas monitoram os grupos extremistas (políticos, religiosos, ideológicos), identificam seus líderes, classificam suas pregações de acordo com o grau de periculosidade – mas só agem depois de episódios como esse em Paris. Avaliar friamente a escalada da brutalidade cotidiana nesse mundo do século XXI demonstra que tal estratégia não é o bastante. A insegurança gerada pelas afirmações de tabus identitários (e pelas pregações de ódio associadas aos incapazes de aceitá-los) açula as alcateias da extrema direita; ainda pior, insufla as maiorias contra todos aqueles que, de alguma forma, estão ligados a esses tabus. Cada atentado perpetrado por um fundamentalista islâmico alimenta os discursos histéricos sobre a incompatibilidade dos muçulmanos em relação às sociedades seculares. A melhor maneira de conter essa marcha demoníaca é aceitar que os fundamentalistas de fato não podem fazer parte das democracias pluralistas; tolerá-los significa violentar os próprios princípios sobre os quais se estabelecem essas sociedades. E o mesmo raciocínio se aplica a todos os delírios sectários do nosso tempo, dos defensores da supremacia branca aos acólitos da ditadura do proletariado. Totalitários teológicos (ou ideológicos) não podem ser aceitos como sócios nos valores dessa civilização; não são herdeiros da tradição liberal-iluminista.

Eis o terrível dilema cuja resposta se impõe. Há tempos. Karl Popper (morto em 1994) já havia enunciado em termos simples uma diretriz – não se pode tolerar os intolerantes. Na mesma linha, Norberto Bobbio (morto em 2004) reconheceu um princípio inquietante – nem toda paz é um bem, nem toda guerra é um mal. Se nada for feito, a presença desses seres bestiais será a gangrena desse mundo como o conhecemos – substituído não por uma versão melhorada de si mesmo, mas pelas distopias sectárias emersas dos abismos infernais de uma humanidade embrutecida. Enquanto acreditarmos que o problema se resume ao decapitador – e seguirmos preferindo ignorar aqueles que aplaudem seu gesto – seguiremos assistindo à erosão do mundo sob nossos pés. Sombrios tempos; sombrias reflexões.

Leandro Gonsales Ciccone
outubro de 2020

TERRA EM TRANSE

– eleições presidenciais de 2020 nos EUA

Em 2016, a vitória de Donald Trump foi quase uma surpresa. Até o último instante, a possibilidade de que alguém tão medíocre (e tão desequilibrado, e tão perigoso) pudesse assumir a presidência dos Estados Unidos pareceu anedota dos Simpsons. Mas eis que a anedota se transformou em quatro anos de tragicomédia; cumpre avaliá-los e refletir se valem uma continuação.

Espécime exemplar de populista, Trump demonstrou a inutilidade do Colégio Eleitoral (criado pela Constituição de 1787 para bloquear a ascensão de demagogos à Presidência, vejam só…). Derrotado no voto popular, o Bufão seguiu aprofundando/impulsionando as divisões internas da sociedade americana como estratégia de viabilização política. Seguindo o manual de qualquer político de sua estirpe, soube aproveitar-se dos sentimentos difusos do americano médio – religiosamente orientado, intelectualmente limitado, xenofobicamente desconfiado – para afirmar-se como o representante daqueles que já não se viam nas elites políticas tradicionais. Empresário (supostamente) de sucesso, figura midiática desde sua participação em famoso reality show (o mesmo que rendeu aos paulistas um governador), Trump simbolizou todo o seu apelo no lema nacionalista make America great again; e, se tal não foi o bastante para a eleição em si, bastou para arrebatar os delegados do Bible Belt e sua sobrerrepresentação no Colégio Eleitoral. Os Founding Fathers devem ter gemido em seus jazigos.

Política interna e externa se cruzaram no enfrentamento da ameaça chinesa. Mais do que uma disputa pela hegemonia geopolítica – que por ora se inclina em favor dos chineses – e por mercados globais, o choque diz respeito ao declínio da produção industrial americana (cujas fábricas e empregos Trump prometeu restaurar, sem resultados) e ao esvaziamento da sua presença militar pelo mundo – vide OTAN, Oriente Médio, Pacífico, a própria América Latina. Rival econômico, político, militar e ideológico, a China é a herdeira previsível de uma lógica de Guerra Fria que se tornou componente essencial do aparato de poder americano. E aos incautos que sofismam o caráter totalitário chinês em favor de um mundo não-americano/não-ocidental, caberia pedir às centenas de milhares de uigures prisioneiros em campos de concentração do século XXI um testemunho sobre as intenções e estratégias da ditadura comunista instalada em Pequim.

Se a tibieza de Obama em relação à Guerra Civil Síria – exemplarmente demonstrada na ameaça de intervenção (não cumprida) em caso de uso de armas químicas – enfraqueceu a liderança americana e alarmou seus aliados, as bravatas e supostos acordos de Trump com autocracias de vários matizes – da Coreia do Norte à Rússia, do Irã à Venezuela – evidenciaram não apenas a mediocridade do próprio Bufão; apequenaram os EUA num mundo onde seu papel está sendo redimensionado de maneira acelerada (e, no mais das vezes, à sua revelia) [ver SOBRE BLEFES E RISCOS e ENTRE ALIADOS E RIVAIS]. A incapacidade de Donald Trump em restaurar a primazia americana, das fábricas às chancelarias, é o principal eleitor de Joe Biden.

As histerias de Trump partem de problemas reais – e preocupações honestas da sociedade americana deste início de novo século. Mas ignoram (quando não endossam, criminosamente, suas nêmesis) outras demandas que se lhes opõem, tão ou mais honestas, como o racismo/segregacionismo ou o meio ambiente – isso sem falar da pandemia de coronavírus. Ao estimular o sectarismo, o negacionismo, o supremacismo, o armamentismo e todos os demônios medievais de direita soltos pelo mundo (livres enfim de suas jaulas imundas nas redes sociais), atiça ainda mais os demônios de esquerda e suas distopias sociopáticas. Aprofundar a fratura entre os indivíduos e grupos legitima o próprio discurso de guerra civilizacional – e alimenta as cruzadas dos tolos e a selvageria dos fracassados. Num mundo que requer pontes, Trump é o homem dos muros; os soviéticos ficariam orgulhosos.

Versão acabada do valentão de high school, Trump alterna a truculência com os mais fracos e a covardia vexatória com os mais fortes. Incapaz de distinguir entre governar e tweetar, criou uma presidência-militância que faz Reagan (o ator inexpressivo de filmes de faroeste cujo derradeiro personagem foi o de paladino do mundo livre no Salão Oval da Casa Branca), seu ilustre antecessor no showbizz político, parecer um estadista. Sua postura isolacionista e/ou individualista, por outro lado, afasta tradicionais aliados e cria imensos prejuízos – há poucos com a subserviência de um Bolsonaro mundo afora.

E, como se não bastasse, Trump representa um dos maiores perigos a que a democracia americana já se expôs. Ao recusar todos os anteparos extra-constitucionais ao seu poder (como ao recusar-se a publicar suas declarações de renda, ao açular milícias armadas, ao negar-se ao compromisso com o resultado das eleições e a transmissão pacífica do poder) demonstra seu desprezo às instituições que jurou defender – do qual a recente polêmica sobre a nomeação na Suprema Corte é exemplo cabal. Se o preço da liberdade é a eterna vigilância (máxima popularizada nos EUA durante a Guerra Fria), a vigília segue atrasada há quatro anos. Caberá ao eleitorado americano decidir se essa tragicomédia ganha uma segunda temporada. Todavia, não custa lembrar que as continuações de maus roteiros são sempre monumentais prejuízos… Os americanos são instados a evitar um make America small again.

Leandro Gonsales Ciccone
Outubro de 2020