GÖTTERDÄMMERUNG

– invasão do Capitólio em Washington

Claro está que muitos deliciaram-se mundo afora com as cenas deprimentes da invasão do Capitólio em seis de janeiro último. Depois de décadas patrocinando golpes e tomadas de poder mundo afora, era a vez dos próprios americanos assistirem à vergonha de suas instituições perante as mídias de todo o planeta. A orgulhosa república dos Founding Fathers sucumbiu por algumas horas diante de uma turba insuflada por um demagogo ensandecido incapaz de aceitar a derrota (humilhante) sofrida nas urnas. E, enquanto isso, milhões se regozijaram mundo afora com a derrocada daqueles sempre tão prontos em ditar regras e impor a ordem em terras alheias – agora claramente incapazes de fazê-lo em sua própria casa.

O regozijo parece inadequado, contudo. Evidenciar o declínio da superpotência ora reduzida a um terceiro-mundismo vexatório é deveras honesto – principalmente diante das circunstâncias. O espetáculo da soberba abatida tem apelo inegável. Mas a satisfação tem um limite claro; todos os que ainda acreditam na democracia foram derrotados e humilhados naquela tarde.

Para além das canalhices praticadas ou endossadas pelos EUA mundo afora – da Emenda Platt à queda de Mossadegh, de Ferdinand Marcos a Pinochet – seus dramas nacionais são evidentes. Pródigos em apoiar mundo afora as democracias que lhes sejam convenientes, os americanos enfrentam desde sempre as contradições dos ideais expressos na Declaração de Independência – e tantas vezes negados na Constituição que se seguiu, e nos sucessivos governos, e na Reconstrução após a Guerra Civil, e nas sociedades sulistas segregadas sob o silêncio cúmplice do norte vencedor. Franklin Roosevelt já violara a regra (então informal) que limitava os presidentes a uma reeleição; apenas a morte o impediu de completar um desabusado quarto mandato. Nixon já tentara censurar a imprensa, sendo forçado à renúncia a partir dos escândalos revelados por ela. Obama foi o presidente mais visado por ameaças de morte na história da nação; e Lincoln e Kennedy não foram os únicos diante dos quais as ameaças se consumaram. Martin Luther King Jr tampouco foi a única liderança da sociedade civil abatida por assassinos; tem toda razão os ativistas negros ao dizerem que uma matilha semelhante de homens de cor (na expressão da mais antiga das suas organizações, a NAACP) que ousasse semelhante ataque ao Congresso teria sido abatida a tiros antes de chegar ao gramado.  Nem o macarthismo dos anos 1950 seria a única época de histeria coletiva do conservadorismo americano, como o trumpismo demonstrou sobejamente. Desde há muito o fundamentalismo religioso alimenta o negacionismo e o obscurantismo nas periferias retrógradas desse grande país. E o cosmopolitismo de suas grandes cidades não esconde seus códigos de exclusão.

Ainda assim, os EUA foram sempre uma referência para as democracias de massas. Gerações de indivíduos engajados impuseram a expansão da cidadania e criaram instituições cuja solidez só se compara à da monarquia parlamentar britânica. Com todos os seus limites e cinismos, a república federativa americana havia sido capaz de sobreviver a traumas terríveis. Todos os herdeiros da tradição liberal-iluminista aprenderam a ver nos EUA uma referência de que o governo do povo, pelo povo e para o povo do pungente discurso de Lincoln em Gettysburg seguia como uma possibilidade nesse mundo imerso em tiranias mais ou menos declaradas. Mas assistimos a um triunfo das sombras naquela tarde de janeiro – mesmo que seus trajes ridículos pudessem inspirar humor involuntário. As fantasias mais bizarras, contudo, não vestiam seus corpos – ocupavam suas mentes. Nessa nova Idade Média que ensombrece cada vez mais os nossos dias, e se precipita num furor que já parece irrevogável, outro marco miliário foi cruzado. Mais do que a alegria pelo crepúsculo dos deuses do capital, os sinos em dobre de finados deveriam acompanhar os noticiários daquele dia; afinal, a última idade das trevas durou mil anos…

Leandro Gonsales Ciccone
janeiro de 2021

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